A última vez que conversei com ele foi em 2013, quando do lançamento da biografia Aldir Blanc – Resposta ao Tempo, do jornalista Luiz Fernando Vianna, para matéria publicada no caderno PrOA, de Zero Hora (depois transformado no atual DOC), em 8 de maio. Foi por e-mail, que ele demorou 20 dias para responder, disse que não se dava bem com o notebook da mulher: “O computador se dá bem com a Mary e com as meninas, mas não comigo. Normal. O aparelho é macho, e eu sou do Estácio”. Tinha 66 anos. Queixou-se de ver os amigos irem morrendo, um a um: “Minha agenda é um cemitério, só tem cruzes”. Na última terça-feira, chegou sua vez de tornar-se uma cruz nas agendas dos amigos vivos.
Não disfarçava uma depressão antiga, que agora o mantinha ainda mais recluso do que o “normal”, enfiado na biblioteca, nos discos e nas conversas com os quatro netos. O quadro depressivo começara bem antes, em 1974, Aldir já com dois anos de atividade como médico psiquiatra, quando sua mulher perdeu as duas primeiras filhas, no parto prematuro. Conta, no livro: “Uma nasceu morta. A que durou mais morreu sangrando por todos os orifícios: ouvidos, nariz, boca, e eu colado na incubadora em um jaleco de merda. Aí é o seguinte: se eu não salvo as minhas filhas, não salvo ninguém. Tô fora, não é isso o que eu quero fazer”.
Decide abandonar a medicina e a psiquiatria para se dedicar só à música, que vinha praticando desde os tempos da faculdade – em 1970, o samba Amigo É pra Essas Coisas, em parceria com Sílvio da Silva Júnior, amigo de adolescência, ganhou um festival universitário com interpretação do MPB4. Em 1971, já era gravado por Elis: Ela, parceria com César Costa filho, dava o título ao disco da cantora. No ano seguinte, começa a parceria com João Bosco e Elis grava Bala com Bala. Em 1973, ela de novo grava mais quatro músicas deles. Eram sucesso nacional, despontava talvez o maior letrista da história da música brasileira.
Mas o duro golpe calara fundo. Mesmo que em 1975 nascesse saudável a primeira filha, ele passou a beber com mais frequência, foi se afastando de alguns hábitos sociais e viu fobias “florescerem de forma amazônica”. Cético “desde sempre”, viu ainda instalar-se um quadro de depressão, de ensimesmamento, de pessimismo crônico. Procurou auxílio médico e terapêutico, mas isso não reverteu a situação, apenas minimizou os estragos. O humor, na música e nas crônicas para jornais, seria sempre sua válvula de escape.
Em suas quase 500 letras de músicas, com inúmeros parceiros, Aldir Blanc transportou os ouvintes para os mais diferentes lugares e interpretações da história do Brasil e da geografia de seus personagens quase sempre intimamente ligados ao brasileiro comum, dos boias frias que sonham com bife a cavalo e batata frita à bailarina de cabaré com um bandeide no calcanhar. Do almirante negro censurado ao bêbado de chapéu coco que espera pela democracia. Do desprezado craque do subúrbio à garçonete do boteco que se dá ao sem-ninguém. Enfim, conhecedor dos atalhos e das malandragens da vida, das dores primeiras e dos amores últimos, ou vice-versa, ninguém cantou melhor o Brasil brasileiro do que ele, poeta atormentado pela lucidez, humanista total, cronista do espanto e da generosidade.
“As coisas nascem numa hora imprevista e da forma mais louca, e nosso trabalho reflete isso”, me disse Aldir na primeira entrevista que fiz com ele e João Bosco para a ZH, em 1976, quando vieram a Porto Alegre lançar o LP Galos de Briga. E já lá estava decidido: “Somos radicalmente contra todo o tipo de mistificação e mitificação. A gente quer ser olhado como trabalhadores de uma classe específica, no caso a classe artística, e não mais do que isso”. Em 1978 ele voltaria à cidade como diretor do show Transversal do Tempo, o mais fortemente político de Elis, que não por acaso teve sua temporada de estreia na capital gaúcha.
Ao iniciar este texto, achei que poderia nele transmitir a admiração e o amor que sempre tive e hoje tenho mais do que nunca pela obra de Aldir Blanc. Mas chego ao fim pensando que fico devendo, para ele, para o leitor e para mim. Aldir significa muito para mim, como pessoa, mais do que como jornalista dedicado à música há 50 anos. Suas músicas me divertiram, surpreenderam, encantaram, ensinaram, me fizeram pensar. A notícia de sua morte chegou como a perda de um irmão. E veio cheia da simbologia de ser envolta na epidemia virótica e no momento em que o país vive uma crise humanitária, ética e política de proporções nunca vistas.
Parceiros
Com quem Aldir Blanc estabeleceu parcerias: João Bosco (mais de cem músicas), Guinga (mais de 80), Moacyr Luz (mais de 60), Cristóvão Bastos (mais de 30), Maurício Tapajós, Carlos Lyra, Paulinho da Viola, Ivan Lins, Ed Motta, Sivuca, Rafael Rabello, Sueli Costa e outros.