"O cara só é sinceramente ateu quando está muito bem de saúde." (Millôr Fernandes)
Mesmo o maior entusiasta em vender as vantagens da telemedicina sabe do que mais precisamos quando adoecemos, a menos, claro, que o felizardo nunca tenha adoecido.
Com a tendência moderna de transferir para o mundo digital tudo o que possa ser resolvido pela inteligência artificial, tornou-se rotina a busca desesperada por uma voz humana quando temos um problema que infelizmente não faça parte dos algoritmos de quem programou a máquina. Todos certamente já passaram pela experiência angustiante de tentar obter uma resposta e ouvir quatro ou cinco alternativas que não se encaixam na sua necessidade. E o alívio quando a máquina "desiste" de você e anuncia: "Um momento que vamos lhe passar para um dos nossos atendentes". Mesmo que seja seguida da advertência: "A sua chamada é a 19ª a ser atendida. Por favor, aguarde, a sua chamada é muito importante para nós". Que bom!
Que ninguém seja tolo de tentar racionalizar o medo do outro.
Então, relaxe e arquive o palavrão para a eventualidade desesperadora de cair a ligação. Se este tipo rotineiro de monólogo virtual já irrita, imagine então se a dúvida pendente de solução envolver a ansiedade de quem está se sentindo fragilizado por uma doença, que para a vítima sempre terá as características assustadoras de terminalidade. Não há nada de incomum nesta irritação, porque é assim que nós, os humanos banais, nos sentimos quando ameaçados. E que ninguém seja tolo de tentar racionalizar o medo do outro.
Buscando adaptação aos novos tempos da comunicação instantânea, não há justificativa para intolerância e insubordinação, mas não podemos perder a racionalidade, porque, afinal, nem tudo o que é possível fazer é razoável que se faça. Sabedoria nesta contingência não é culpar a tecnologia por despersonalizar as relações pessoais, mas utilizar o que de melhor cada avanço tenha a oferecer, sem corromper os princípios básicos de cada profissão. Em medicina, é certo que a inteligência artificial está oferecendo instrumentos valiosíssimos para qualificação do atendimento, necessitando apenas de regulação dos limites, considerando que a máquina não entende de emoções, e quem ela pretenda ajudar é puro sentimento.
No consultório moderno, seremos doravante, e inapelavelmente, três personagens: um sofredor angustiado, um banco de dados imbatível e um especialista em sentimentos humanos, apto a administrar as informações que melhor sirvam aos interesses do paciente, por entender de medo, angústia, empatia, fantasia de morte e esperança.
Então, se você é um jovem afetuoso e decidiu que cuidar das pessoas que adoeceram é uma tarefa empolgante, aproveite tudo o que a tecnologia tem de mais moderno para facilitar sua vida e fique tranquilo, a sua humanidade nunca será substituída por nenhum robô.
Mas se você não tem tempo a perder com essas babaquices, nada impede que seja muito feliz, desde que assuma que tem prioridades diferentes. E busque a realização pessoal, que todos perseguimos, exercendo uma das muitas e maravilhosas profissões nas quais empatia e generosidade são consideradas características pessoais dispensáveis. Nas horas vagas, reze para que o destino lhe traga, quando adoecer, um desses tipos obsoletos que ainda acreditam que afeto é virtude.