Com o distanciamento social prolongado e sem prazos que possam realimentar a esperança, as nossas relações afetivas se modificaram. A intolerância desbancou a gentileza, e a agressividade está sempre com os dentes arreganhados, à espera que algum gesto dissonante possa ser usado como declaração de guerra. A banalização da morte se transformou em manifestação de inconformidade, não importa o tamanho do que se considere ofensivo.
Soterrados pela insegurança e chocados com a descoberta diária de empresas e serviços que literalmente desapareceram, até os votos renovados de que a vida volte a fluir sem sobressaltos soam cada vez menos convincentes.
Como sempre acontece nas grandes crises, a busca indispensável da sobrevivência trouxe sugestões, algumas precárias, mas que foram aceitas porque, afinal, era o que tínhamos. Está sendo assim na prática médica.
Durante o ano de 2019, o Conselho Federal de Medicina tinha, num primeiro momento, cedido à pressão de grandes corporações, em favor da liberação da telemedicina, mas por resistência das entidades médicas voltara atrás, até que os protocolos dessa nova forma de oferecer medicina fossem revisadas e definidos os padrões éticos da sua utilização. Com a pandemia, e por absoluta falta de alternativas, as barreiras foram removidas temporariamente, ou seja, até que a crise sanitária terminasse.
O que vai ocorrer quando a vacinação em massa banir o fantasma do contágio é a grande questão. Os planos de saúde, com certeza, alardearão os benefícios de uma medicina mais expedita e disponível, valorizando ao máximo o teórico encurtamento da distância entre doença e a saúde, e omitindo, por puro constrangimento, o fato de que o simulacro de medicina que já se faz nos sobrecarregados e deprimentes ambulatórios da saúde pública pode sim ser reprisado, de maneira até mais higiênica, pela convivência impessoal do computador. Os problemas burocráticos, como remuneração profissional, agendamentos de consultas e exames, receitas eletrônicas, profilaxia de judicialização e atestados virtuais, serão facilmente solucionados, e o braço empresarial da questão festejará.
Tudo resolvido, seremos eternamente agradecidos à pandemia que abriu os nossos olhos, mofados de sectarismo, para o quanto a medicina podia ser mais simples e efetiva?
Seremos forçados a acreditar que o fascínio das máquinas modernas poderá tornar o abraço dispensável?
Receio que não. Porque, dessa praticidade sedutora, terá ficado de fora um grupo importante: o das pessoas doentes. Não os que gostariam de fazer um check-up de rotina ou aqueles que resolveram aproveitar a gratuidade da consulta pelo plano de saúde para ver se tem alguma maneira de esclerosar estas veinhas que, com a idade chegando, teimam em aparecer logo acima do tornozelo. Estou falando das pessoas que adoecem de verdade, quando o medo da morte não tem nada de exagero ou fantasia.
Ou seremos forçados a acreditar que o fascínio das máquinas modernas poderá tornar o abraço dispensável?
Se for assim, já estou indo liberar a minha vaga no estacionamento.