Tenho um certo fascínio por este sentimento: o medo. Muito porque convivo com ele todos os dias, confortando pessoas que já perderam o pudor de confessar o medo que sentem – e eu mesmo temendo não conseguir, de fato, ajudá-los.
Mas também porque poucos sentimentos são tão poderosos no mister de transformar as suas vítimas, seja pela submissão ou pela vingança.
Um dos textos mais pungentes na descrição do medo está no Memórias do Esquecimento, em que o maravilhoso Flávio Tavares relata, com uma crueza que nem imaginávamos, a experiência dolorosa de ser torturado e resistir, e ser outra ver exposto à ameaça, à humilhação e à vilania, e a mais sofrimento, e à perda da fé, e ao fim da esperança, e de repente a descoberta de que é possível virar o fio do medo. E perceber, com irresignação, que nada mais poderá intimidá-lo. E entender que a maior vingança dispensa o revide da agressão física e se basta na atitude desapegada de quem não teme mais coisa nenhuma. E nada assusta mais o torturador do que o torturado não sentir medo, porque, reconhecidamente, o núcleo da psicopatia do torturador é a covardia.
Afora essa situação excepcional, produzida pela fusão de maldade com sadismo, há ao longo da vida inúmeras provações que parecem testar a nossa capacidade de resignação ou revolta, diante de circunstâncias cruéis e desafiadoras. É assim na doença grave, nos lutos inesperados e nos amores estilhaçados.
Por absoluta falta de alternativas, estamos sempre sendo testados na definição dos nossos limites de coragem e resiliência. A nossa reação é que costuma ser muito heterogênea e imprevisível. Alguns guardam o choro e lutam, outros se submetem à dor e choram de pena deles mesmos.
Curiosamente, o comportamento da sociedade diante do sofrimento coletivo, como numa pandemia, tende a seguir uma sequência de atitudes que se repetiram em todas as grandes catástrofes que assolaram a humanidades ao longo dos séculos. Depois de um período inicial de negação típica, instala-se uma onda crescente de temor coletivo, em grande parte insuflada pelos donos da comunicação que percebem, como ninguém, o quanto é submissa uma população de covardes receosos. O medo paralisa a sua vítima e a coloca numa prisão virtual, em que o homem assustado guarda, com máximo desvelo, a chave do próprio cárcere.
Mas o algoz sabe, ou devia saber, que este poder macabro é efêmero, e que inevitavelmente chegará o momento da saturação do medo, e então amanhece um tempo de libertação, e sem que ninguém identifique quem deu início, começa a disseminar uma alaúza de destemor, inicialmente recatada e depois assumida e estridente.
Sem dúvida, esta sequência comportamental, em que nos subjugamos até o limite do insuportável, é a mesma que determina a revolta irreprimível que assinala a curva do fim do medo, embota os sensores da prudência e liberta os demônios da ousadia.
Talvez essa atitude libertária da juventude, superlotando bares em aglomerações desprotegidas, não seja só irresponsabilidade e insensatez, mas expresse o sentimento, não necessariamente consciente, de fadiga da repressão. E então desaguamos num paradoxo: quem tem mais tempo por viver é quem menos tolera esperar por vivê-lo. De qualquer modo, dessa legião de empolgados audaciosos, devem estar excluídos os jovens asmáticos e obesos. Além, claro, daqueles que precisem cuidar dos seus amados avós, esses velhinhos fofos que gostariam de um tempinho extra, só para amá-los um pouco mais.