"A mente humana tem um mecanismo primitivo de autodefesa que nega qualquer realidade estressante demais para o cérebro. Isto chamamos de negação." (Dan Brown)
O instinto de negação, que tanto criticamos no outro, mais vezes nos protege quando a tragédia não bateu na nossa porta, mas anda solta pela vizinhança.
Muito raramente pensamos que, por verossimilhança, aquilo podia estar acontecendo conosco, mas preferimos ignorar e, adotando uma visão muito adequadamente autoprojetora, consideramos não merecer.
Muitas vezes, no entanto, testemunhei situações em que personagem, família e circunstância em tudo se pareciam com a minha própria vida. Mas outra vez, por algum mecanismo superior, generoso e desconhecido, eu tinha sido poupado.
Conviver com o sofrimento, a coragem, a religiosidade e a resiliência daquela família foi inesquecível.
O convite para visitar o olho do furacão chegou numa carta, com um apelo desses que só uma mãe consegue exprimir. Seu filho Eduardo, portador de diabetes juvenil, concluíra o curso de Medicina aos 26 anos e, um ano depois, a retinopatia o cegara. Também por causa da doença de base, evoluiu para insuficiência renal que o levou à hemodiálise. Por conta de uma neuropatia periférica grave, perdeu a condição de deambular e, três vezes por semana, era visto entrando na unidade de hemodiálise nos braços do pai, um homem de uns 60 anos, retaco e forte. Meses depois, foi submetido a transplante renal intervivos tendo como doadora sua irmã mais velha. Por uma série de intercorrências, acabou perdendo enxerto e voltou a diálise.
Num dos muitos comas relacionados com o diabetes, precisou ser intubado e desafortunadamente desenvolveu, por conta disso, um estreitamento da traqueia.
A pobre mãe encerrou a descrição da sequência trágica com um pedido candente: "Eu soube que o senhor tem experiência com cirurgia de traqueia e talvez possa fazer que meu filho volte a falar. Acontece que eu não tenho recursos para levar o Eduardo até Porto Alegre, e então meu apelo: pense com o coração de mãe, e considere a possibilidade de vir operá-lo aqui, na nossa cidade".
Nem precisei considerar muito. Fui. Antes de encontrá-lo, fui advertido, pela irmã, que devia ignorar o hematoma na testa. Ele já não podia ser deixado só, no banheiro, porque duas vezes tentara o suicídio.
Conviver com o sofrimento, a coragem, a religiosidade e a resiliência daquela família foi inesquecível. Mais ainda, a mensagem que recebi naquele dezembro:
"Caro doutor: Sofri neste ano mais do que jamais imaginei uma pessoa pudesse sofrer. Mas muitas vezes lembrei de você por ter permitido que, ao menos, eu falasse do meu sofrimento. Feliz Ano-Novo, e que Deus cuide de você melhor do que tem cuidado de mim. Ditado por Eduardo em 21 de dezembro".