A colaboração a seguir foi enviada pelo nefrologista e professor universitário doutor Elvino Barros.
Os rins são órgãos vitais para a sobrevivência do ser humano. Na sua ausência, ou em condições de doenças que levam à perda total de suas funções, o indivíduo necessita terapia de substituição da função renal, como diálise ou transplante renal. No passado – não muito distante –, pessoas com insuficiência renal aguda ou doença renal crônica terminal morriam pela ausência desta opção terapêutica.
Com o avanço da medicina, da engenharia biomédica e de tecnologias de maior complexidade, nas últimas décadas passou a ser possível a vida mesmo na ausência dos rins. A utilização de processos para ultrafiltração da água e depuração das toxinas do sangue, como a diálise, ou mesmo o implante de um novo rim, trouxeram novo alento aos pacientes anteriormente condenados à morte. Embora esse desenvolvimento seja relativamente recente, pouco tem sido escrito sobre esses avanços e, em especial, sobre a impressionante inovação que foi a hemodiálise em nosso meio. Mais uma vez os médicos do RS foram diligentes e hábeis na busca de tratamento inovador para seus pacientes.
A primeira máquina de hemodiálise chegou ao nosso Estado em 1960, doada pela família Chaves Barcelos. Essa máquina permitiu a inauguração do “Serviço de Hemodiálise Ermelinda Monteiro Chaves Barcelos”, no Hospital São Francisco, na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Em 11 de novembro de 1960, a imprensa noticiou o grande acontecimento médico. Na ocasião, o professor Luiz Sarmento Barata fez um emocionante discurso, que encantou os presentes na inauguração do novo serviço. A máquina de hemodiálise permaneceu guardada e empacotada na embalagem até o início do ano de 1963.
Nesse momento, surge a figura de Moacyr Scliar, formado em Medicina pela UFRGS em 1962. Como orador da turma, faz saudação ao paraninfo César Costa e homenageados:
“Nós homenageamos em César Costa o mestre que fez do seu saber um meio para nos ensinar, antes de tudo, a respeitar o ser humano. Estamos diante de Pedro Luiz Costa e Paulo Duarte, obstetras, e de Décio Martins Costa, Raul Seibel e Rubião Hoefel e nos lembramos de seus ensinamentos. Estamos diante de Tauphick Saadi, Arthur Mickelberg, João Antunes, Ênio B. Ferreira, Loreno Brentano – todos mestres no verdadeiro sentido da palavra, embora nenhum investido da eternização na cátedra. Estamos diante de Paulo Pires da Silveira, funcionário dedicado, a quem muito devemos e que personifica o esforço de todos os heróis obscuros sobre os quais se apoia a Universidade Brasileira.
Meus colegas: aproxima-se a despedida. Durante seis anos, nós, que éramos estranhos, nos tornamos amigos e, mais do que amigos, irmãos. Tivemos juntos alegrias. Tivemos a tristeza imensa de ver, neste dia derradeiro, que há entre nós um lugar vazio: o lugar do colega que foi vítima do terrível mal que tantas vezes aprendemos a temer. Lembraremos que, tendo a doença tão perto de nós, maiores serão nossas forças para combatê-la... Prossigamos juntos, estamos presentes”.
Nove dias depois de sua formatura, Moacyr Scliar estava no seu primeiro plantão como médico residente da enfermaria 29 da Santa Casa. Foi chamado para atender um paciente jovem que vinha de Santa Catarina após acidente causado pela picada de uma aranha. Homem de origem germânica, com uma tez clara, mas a pele dele estava marrom em função da hemólise violenta. Havia também redução da hemoglobina, resultando em intensa anemia. Além disso, desenvolvera quadro de insuficiência renal aguda. Diante daquela emergência, foi decidido proceder a hemodiálise. Aqui, nunca havia sido feita.
O aparelho estava na embalagem. A equipe médica abriu e leu o manual de instruções. Era como se fosse uma receita, passo a passo. Partiram aos procedimentos e, para a felicidade da equipe, deu certo e Scliar lembrou, sobretudo, a vibração do doutor Moyses Lerrer, que tinha acompanhado a realização de diálises em São Paulo. Estava ansioso e, felizmente, tudo funcionou bem. Foi feita, naquele dia, a primeira hemodiálise no RS.
O estado do paciente era muito grave e, infelizmente, ele faleceu depois de vários dias. A equipe era formada basicamente pelo professor Antônio Azambuja, o supervisor geral, Moyses Lerrer, o chefe mais efetivo, e Scliar, o residente responsável pelo atendimento do jovem paciente. Faziam parte, também, Domingos D’Avila, então um doutorando brilhante, antecipando o brilhante médico que seria, e a doutora Ana Maria Maciel Alves, que dividia a sua atenção entre a nefrologia e a cardiologia. Depois disso, nossa equipe fez inúmeros procedimentos, tanto de hemodiálise como de diálise peritoneal.
Scliar saiu exausto do seu primeiro plantão, mas feliz e realizado com sua atuação no primeiro dia. Escolheu como especialidade a nefrologia, apoiado por seus mestres: Antônio Azambuja, Moysés Lerrer e Cesar Costa. Entrou para a história da medicina gaúcha como o primeiro residente a utilizar a hemodiálise no Rio Grande do Sul.