Final de plantão, todo mundo exausto, metade pelo trabalho, outra metade pela tensão _ que tinha dado uma trégua e agora estava de volta, inteira. Então, mais uma vez tocou o alarme do box 17. Nova correria, para outra vez massagear um coração que, por falta de oxigenação, já desistira. Foram 95 minutos de sons alternados, da massagem, da insuflação manual do balão e de monitores alertando que a esperança racional já tinha saído pela janela. Como a menina só tinha 22 anos, o esforço continuou por mais um tempo que ninguém mais se animou em cronometrar. Até que alguém tomou a dianteira: "Pessoal, não tem mais sentido".
Todo mundo parou de fazer o que fazia, mas ninguém saiu do lugar. Até o ruído da retirada das luvas era parcimonioso, para que a mãe, do outro lado da parede, não percebesse que tínhamos perdido.
O desconforto desta perda, que os intensivistas conhecem como ninguém, fica reverberando, desgruda do jaleco mas sobe no ombro e embarca no carro no caminho de casa. Arranha o esôfago na hora do jantar e enche de pedras o travesseiro.
O choro da mãe, consumida por noites insones e orações fúteis, ainda se juntava ao desespero inculposo de não ter conseguido dobrar o discurso negacionista da filha, vítima incauta de uma patrulha ideológica de uns tipos que nem sabem para que a ciência serve, mas são contra, e dos que escolhem estupidamente a doença porque desconfiam dessa história de vacina.
A consciência de que muitas daquelas mortes poderiam ter sido evitadas pela vacina tinha esgotado a paciência.
Na manhã seguinte, durante uma sessão do café, alguém levantou a questão que todo pai escolheria nunca ter que responder: "O que fariam se um filho amado de vocês, transbordando de argumentos persecutórios, extraídos a golpes de idiotice de teorias da conspiração, essas que enchem a lata do lixo da internet, anunciasse que não se vacinaria, por nada deste mundo?".
Houve uma troca não programada de olhares, quando o mais velho, e por todas as razões o menos tolerante com a estupidez humana, radicalizou: "Depois da surra?". Todos fizeram uma parada respiratória, mas ninguém protestou.
Os civilizados que rodeavam aquela mesa são pais amorosos, de afeto genuíno, e defensores dos direitos individuais. Mas estavam cansados, pela sobrecarga de casos graves, e mais ainda pela sucessão de perdas que foi minando a autoestima de quem foi treinado a lutar pela vida e agora assistia inerte à banalização da morte. A consciência de que muitas daquelas mortes poderiam ter sido evitadas pela vacina tinha esgotado a paciência.
Passados alguns meses com redução gradual de casos novos e de óbitos, a chegada da cepa nova foi vista com alguma serenidade pelos infectologistas, por ser menos letal, apesar de rapidamente disseminante, e porque esta combinação, historicamente, antecede o fim das pandemias. E então, de repente, o alto percentual de ocupação das UTIs voltou à mídia, desta vez por iniciativa de pessoas que tinham se negado à vacina e optado pela doença, tudo em nome do livre arbítrio, claro.
Os médicos, porque só sabem fazer isso, retomaram a batalha insana para salvá-los, mesmo sabendo que, com um tubo na traqueia, o "muito obrigado doutor" ia ter que aguardar uma eventual sobrevivência. E sem nenhuma expectativa de mudar a cabeça dos radicais, embotados demais para cederam à única explicação possível para 90% dos casos mais graves, estarem entre os 30% dos brasileiros ainda não vacinados.