O princípio e o fim de muitas etapas da nossa vida nem sempre têm limites estanques. É assim lá no começo, quando ficamos indecisos sobre o que fazer da vida. E então, um dia, despertamos, e daí em diante agimos como se aquele plano tivesse sido A, desde sempre. E as angústias da escolha desgarram da memória e ficam pelo caminho, esquecidas.
Muitas vezes o ritual de planejamento, concepção, entusiasmo, decepção e mudança de rumo, segue trilhas inusitadas, porque a vida é afeita a surpresas diante de encruzilhadas que exigem reservas de determinação e ousadia, nem sempre disponíveis.
Sem contar as situações não planejadas que nos apanham desprevenidos, como a traição amorosa, a frustração profissional, a derrocada financeira e, mais frequente de todas as tocaias, a doença.
Nas últimas décadas, deparamos com uma situação imprevista com a qual estamos tentando conviver com alguma naturalidade, a da morte pela metade. Essa que machuca, dói, e faz sofrer, mas não se completa. Essa que, por uma inversão biológica indesejada, conserva intacto um corpo indolente a carregar uma cabeça que já morreu.
Depois de uma longa trajetória de surpresas, falsas esperanças, risos constrangidos e abandono involuntário, descobre-se que o nosso queridão está na última sala de espera. É quando o ser amado desconecta-se definitivamente, a família não mais o reconhece e se apega à lembrança do que ele foi, porque já não é.
Os progressos da neurociência foram, até aqui, concentrados em reconhecer o inimigo solerte e implacável, enquanto a humanidade, cada vez mais longeva, aguarda a ressureição que, por enquanto, parece tarefa divina.
As histórias relatadas nesse limbo, que define a morte parcial, são comoventes, porque retratam a natureza humana na sua essência, irretocável.
Um filho extremado me confidenciou que a experiência mais sofrida foi ouvir de um médico que devia aceitar que seu pai, aquele do arquivo amoroso, batera em retirada, e que ele, que fizera o que podia, devia agora pensar nos seus filhos e tocar a vida.
Chorou pelo caminho, atormentado pela ideia de abandonar quem nunca tinha desistido dele. Barbear o pai todos os dias e contar-lhe o cabelo a cada duas semanas foi a ponte de afeto que ele estendeu por um tempo, que ele já não lembra quanto, mas no seu coração tem certeza que foi pouco.
Num asilo, uma velhinha em fase avançada de Alzheimer despertou aos gritos de um sono que parecia irreversível pedindo por sua mãe, e quando ouviu da enfermeira que sua mãe não estava respondeu desafiadora: “Não tente me enganar, ninguém faz, como minha mãe, roscas de polvilho, com este cheiro”.
A Giovana e uma colega do segundo ano da faculdade foram encarregadas pela professora de proceder o exame de uma paciente demenciada com enorme dificuldade de comunicação. A professora instruiu as duas jovens a tomarem a mão da paciente e, apoiando o braço com a outra mão, fazerem movimentos ritmados para desfazerem uma contratura muscular chamada espástica. Depois de alguns minutos de massagem, foram surpreendidos pela frase inesperada de quem se considerava incomunicável: “A mão dessa menina é tão quentinha!”.
Em algum escaninho remanescente da memória destruída, aquela percepção carinhosa estava arquivada, à espera de um afeto.
Não por acaso, os grandes centros de cuidados paliativos aceitam voluntários dispostos a massagear as mãos de pacientes terminais depois de observarem que esse simples gesto reduz em 50% o consumo de analgésicos. Os prodígios do toque humano sempre representarão um grande trunfo no confronto com a medicina robotizada.