Já faz alguns anos, mas a memória privilegiada, que ostenta aos 87 anos, faz com que Terezinha Renosto lembre como se fosse ontem: o Teatro Pedro Parenti lotado, a plateia pondo-se de pé para aplaudi-la após ter cantado em coro os versos de América, América, canção que tocou ao piano em sua quarta apresentação no recital anual da escola de música. Mais do que reconhecimento ao talento, era uma ovação emocionada diante da força de vontade de alguém que se desafiou a aprender algo novo numa idade em que tantas pessoas acham que só lhes cabe esperar pelo passar dos dias.
A história da Tere, como é mais conhecida, com a música começa aos 70 anos. Teria sido um dia qualquer, voltando para casa após ter cumprido com a rotina de ir até o Hospital Pompéia dar a eucaristia aos enfermos, se não fosse um teclado na vitrine de uma loja ter chamado sua atenção. A inspiração que ela considera ser um recado divido a fez entrar na loja, comprar o teclado e pedir ao atendente a indicação de uma professora de música.
– Eu recebi aquele chamado, mas pensei: ‘Jesus, eu trabalhei em metalúrgica por 30 anos, depois disso só cuidei da minha família...vou querer aprender música nessa idade?’. Mas aquilo vinha mais forte no meu coração, como se Jesus pedisse para que eu fizesse música para ele – explica Tere, que tem na religião um alicerce.
Foi assim que o caminho da idosa se cruzou com o da professora Esmeralda Frizzo, que por quase duas décadas seria responsável não apenas por ensiná-la, mas também por motivá-la a não desistir diante das primeiras dificuldades.
– Foi um desafio para mim, mas também para ela. Eu tinha muitos tremores, que os médicos dizem ser de fundo nervoso. Achava que nunca ia conseguir, mas aos poucos fui aprendendo. Um dia ela gravou eu tocando numa aula, e dias depois me mostrou a gravação sem dizer que era eu. Estava tão bem tocado, que nem acreditei. Foi quando decidi que não ia mais parar – lembra.
Companheira inseparável, a música parece ter surgido na vida de Tere como presente por uma missão cumprida: pouco antes de aprender a tocar, ela havia perdido o marido, Raul, que por 10 anos conviveu com Alzheimer, mas teve na esposa uma cuidadora incansável. Antes da pandemia, ela levava seu teclado para lares de idosos, fazia apresentações para pessoas enfermas, sempre espalhando otimismo. Ao completar 80 anos, em 2014, gravou um CD para presentear familiares e amigos.
– Peço para o Espírito Santo me colocar no bom caminho, e acho que ele entendeu que a música era esse caminho. Quando estou me sentindo triste, pego o teclado e começo a tocar, e logo me vem uma paz no coração que leva a tristeza embora na mesma hora – diz a pianista.
Uma aventura em família aos 75 anos
Não basta ser mãe, tem que participar. Mas será que a máxima ainda vale quando o filho é apaixonado por esportes radicais? Para a Maria Regina Goldani, sim. Há duas semanas, a doceira de 75 anos experimentou pela primeira vez a adrenalina de descer, pendurada por uma corda, um paredão de 35 metros de altura da Gruta da Nossa Senhora da 3ª Légua, em Caxias do Sul. Sob os cuidados do filho, Paulo Pasa, que é fotógrafo de aventuras, a idosa recomenda a experiência e já está de olho na próxima aventura:
– Eu sempre acompanhava os lugares onde meu filho ia fazer rapel e achava muito bacana, mas que podia ser perigoso. Até o dia em que ele levou uma sobrinha-neta minha de seis anos para fazer, aí foi quando criei coragem e quis experimentar também. E foi muito tranquilo, porque a gente vai como se fosse numa cadeirinha, com toda a segurança. Quando tu te sentes à vontade para abrir os braços, vem uma sensação de liberdade que nunca tinha sentido na vida – conta a septuagenária, que postou fotos da aventura nas redes sociais e alcançou quase 200 curtidas.
Para dar o necessário apoio moral, participaram do rapel, além do filho, a nora de Maria Regina e um neto com a namorada. Apenas a filha mais velha, de 53 anos, preferiu assistir de fora:
– Ela ficou mais nervosa do que eu (risos).
Não é que seja preciso incentivo dos filhos para que Maria Regina sinta vontade de experimentar coisas novas. A mente é inquieta por natureza, assim como a vontade de estar em movimento:
– A gente chega num momento da vida em que a cabeça é mais jovem do que a idade. A vontade de fazer coisas novas permanece com a gente. Se for achar que estou velha e ficar “amontoada” num sofá, aí sim que vou envelhecer.
Além de ser um presente de aniversário que deu para si mesma e para os filhos, o rapel também foi uma espécie de desafogo após mais de um ano confinada por conta da pandemia: “meus filhos me colocaram uma tornozeleira eletrônica”, brinca. Revigorada, agora a septuagenária conta os dias para reencontrar presencialmente com os colegas do curso de Informática do programa UCS Sênior:
– É uma turma que gosta muito de conviver, de ir ao cinema, de fazer passeios. Sinto muita falta. Convidei alguns para o rapel, mas ninguém topou ainda (risos).
Saúde para amar ainda mais
O amor preserva, mas não faz milagres. É por isso que Adelaide Britto, 87, se prepara com sessões de pilates duas vezes por semana para chegar com muita saúde ao próximo dia 6 de setembro, data em que ela e o marido, o ex-jogador do Juventude, Inter e Flamengo (atual Caxias), Anselmo Britto, 96, completam 69 anos de casamento. Contando com o namoro, são mais de 70 anos de um convívio que a idosa considera tão importante para a saúde alma quanto a atividade física é para o corpo e a leitura diária é para a mente:
– A gente toma chimarrão junto, joga cartas, bate papo. Companheirismo e cuidado são as palavras-chave, mas também é preciso ter uma boa dose de tolerância. São coisas que só o tempo ensina – comenta Adelaide, que mora no centro de Caxias.
Do casamento nasceram duas filhas, Elizabeth e Jeanete, e um filho, Anselmo como o pai. Dois netos e uma bisneta completam a orgulhosa família que tem no casal uma inspiração:
– Ver a forma como eles cuidam um do outro e o zelo pela saúde para aproveitar melhor a vida é algo que nos motiva muito – comenta o neto Gabriel, 30.
Entrevista: estar presente, mas sem superproteger
Para a psicóloga caxiense Luciane Farina Fochesatto, terapeuta de família e casal com 30 anos de experiência em psicoterapia, a forma como as pessoas encaram a terceira idade passou por uma revolução nas últimas décadas. Se até os anos 1990 completar 70 anos significava a preparação para encarar a própria finitude, hoje a velhice é vista como uma parte da vida ainda cheia de possibilidades, desde que a pessoa tenha saúde e disposição para aprender a lidar com as limitações físicas naturais. E são exemplos como os desta reportagem que a psicóloga tem deparado cada vez mais no consultório. A seguir, confira uma entrevista com a especialista:
Almanaque: Qual a importância da família como um suporte para a pessoa idosa se sentir mais motivada e disposta para viver plenamente?
Luciane Fochesatto: Na intenção de ajudar o idoso, muitas famílias acabam invalidando suas capacidades, mesmo com a melhor intenção possível, que é a de cuidar, dar carinho, ajudar com as limitações que todos nós iremos passar com o passar dos anos. Confunde-se a limitação física com limitação emocional. Porque o idoso acumulou uma bagagem emocional muito grande e muito importante, e as famílias às vezes não percebem que o cuidado com o corpo, com a saúde, acabam superprotegendo e, por sua vez, incapacitando física e emocionalmente esse idoso. O que nós conversamos em consultório é que esse idoso, por mais dificuldade que tenha, continua sendo um ser humano e não pode ter suas experiências de vida e os seus desejos invalidados, que é o que acaba ocorrendo quando há a superproteção.
Que diferença pode fazer na qualidade de vida manter-se disposta a escapar da rotina e experimentar algo novo?
O que a gente vê muitas vezes é que algumas pessoas, com o passar dos anos, acabam se entregando ao perder um pouco da sua capacidade física. Pessoas que encontravam o sentido da vida no trabalho, por exemplo, quando se veem incapacitadas, perdem a vontade de viver. Muitos idosos, porém, conseguem ressignificar: “se eu não posso mais trabalhar, cuidar da minha casa ou da minha horta como cuidava, então eu vou fazer outras coisas”. Redirecionar o sentido da vida é importante, porque valida novas competências. Sentir-se capaz de realizar coisas é importantíssimo para manter essa vontade de viver. Todos nós vivemos constantemente procurando dar sentido à nossa vida. A ausência do sentido é a porta de entrada para a depressão.
Tu trabalhas há 30 anos tendo o público idoso como um dos preferenciais. O que mudou na velhice de hoje em relação ao que era décadas atrás?
A percepção da própria idade mudou. Há 30 anos uma pessoa de 60 anos já era considerada idosa, e hoje não mais. Nós ressignificamos o conceito de idade, agregando atividades a essa nova etapa da vida. Até 30 anos atrás a pessoa se aposentava e aquilo era, literalmente, “fim de carreira”. Hoje as pessoas já se preparam mais para chegar na velhice e iniciar uma nova etapa, fazendo dela a melhor idade.
Vejo isso nas casas de repouso, por exemplo. Os asilos, antigamente, eram depósitos de velhos. Hoje não. Muitas pessoas pedem para as próprias famílias para irem para as casas de repouso, seja por companhia, ou por estar se restabelecendo de alguma questão de saúde.
Qual a importância do convívio e da socialização na terceira idade? Essa tem sido uma preocupação mais presente para o idoso de hoje?
As pessoas vêm buscando mais essa qualidade de vida, para que a possibilidade de uma vida mais longa venha com mais saúde física e também com mais convivência, com mais atividades. Isso não quer dizer que eu não possa ter momentos de estar só. Porém, o que se observa, é que a família não é mais a única companhia para o idoso, e ampliar essa rede é muito importante, para evitar ficar só a mercê do tempo que sobra na rotina dos familiares. É uma forma de pensar diferente das pessoas que estão envelhecendo hoje: evitar a sensação de abandono.
Um tempo atrás, acomodar-se era condição básica da velhice. “Envelheceu? Te acomodas”. Hoje não. As pessoas buscam novas informações, buscam atividades para sair dessa acomodação, buscam novos recursos para proporcionar momentos de prazer. Fico feliz ao ver muitos idosos se permitindo ter mais prazer, valorizando a vida ao invés de só esperar ela passar.