O bicho homem é complicado e, confinado, fica pior. Na desesperança e no inconformismo.
E os queixosos da monotonia do trabalho agora admitem sentir muita falta da rotina, que trocava a angústia por serenidade e ainda dava acesso às pessoas e à possibilidade de ajudá-las, recebendo em troca a gratidão.
Semana passada, completamente carente, fazendo compras no supermercado, fui saudado à distância por uma velhinha, que por trás da máscara tinha uma carinha muito fofa. E ela disse:
— Doutor, tenho uma enorme admiração pelo senhor e rezei para que um dia eu lhe encontrasse. Pois hoje lhe encontro e não posso nem lhe abraçar. Isso só faz aumentar o ódio que eu tenho por este vírus.
Nem vou falar do adjetivo que ela usou para falar do vírus.
Nos bastidores, o medo da doença tem substituído a gratidão por crueldade.
Aquela insólita declaração de amor salvou meu dia, que se encaminhava para se perder por inanição de afeto. De qualquer maneira, quatro semanas sem dar a ninguém uma razão para me agradecer é desesperador.
E esse tempo perdido sem abraçar ninguém, quem vai compensar? E para qual ministério eu posso encaminhar este pedido de reembolso afetivo?
Do ponto de vista da saúde pública, uma enorme dificuldade é estabelecer o limite entre a informação que protege e o exagero que insufla o medo, que, como já escrevi, tantas vezes atropela a razão. Apesar de a mídia mostrar manifestações comoventes da população rendendo homenagens aos profissionais que trabalham na linha de frente, nos bastidores o medo da doença tem substituído a gratidão por crueldade.
Como a médica que recebeu um recado no para-brisas do seu carro: se alguém adoecer neste prédio, você é a culpada.
Ou a enfermeira de Barcelona que teve o carro pichado, “Rata contagiosa”, e não conseguia parar de chorar.
Ou a nossa amada Lya Luft, que tem casa em Gramado e adora a cidade, e que ao sair do supermercado foi xingada por um casal que, ao ver a placa do carro, disse: “Volte já para Porto Alegre, não venha trazer doença pra nossa cidade!”. Uma injustiça com a doçura da Lya, mas ela sabe que o medo embrutece as pessoas, não obrigatoriamente más.
Se a melhor maneira de reduzir a ansiedade é se manter ocupado, temos de reconhecer que só o intelectual pode praticar o chamado ócio produtivo porque saberá empregar melhor o tempo e se dedicar a prazeres protelados, como escrever um livro, ouvir uma ópera inteira sem interrupção, ou reler um clássico (durante tanto tempo fiquei me prometendo reler Crime e Castigo, só não sabia que daria para reler todo o Dostoiévski).
Mas e os trabalhadores braçais, que além de não terem onde descarregar energia ainda ficam matutando como fazer para pagar as contas que a falta do trabalho inviabilizou? Um velho paciente, meu antigo mecânico, ligou para uma consulta online e quando lhe perguntei como estava a quarentena, respondeu:
— Este tempo trancado em casa me fez entender por que quando abro a porta o meu cachorrinho sai naquela disparada!
Que não se pretenda generalizar a telemedicina. Ninguém abraçará um robô diante da ameaça da morte.
Quando ele desligou, fiquei pensando: estou precisando muito que alguém abra a porta para mim. E nem temos certeza de que as sobras de tudo representem mais empatia futura. Como um realista esperançoso, estou determinado a crer na utopia, porque ela precisa ser buscada para justificar a nossa vida. Mas sendo realista em relação ao futuro, qualquer projeto que signifique mais do que já tínhamos antes da pandemia vai parecer um exagero. Como era já está de bom tamanho. Dar as mãos, abraçar, beijar as pessoas que correspondem ao nosso afeto, voltar do supermercado sem a preocupação de lavar cada saco plástico das compras, e viajar: não dá pra ser feliz sempre no mesmo lugar.
Da nossa experiência com a interlocução por via remota, em alguns aspectos avançamos, porque sairemos mais treinados nos instrumentos de comunicação digital, mas o triunfo da comunicação remota, se ocorrer, precisará ser assumido como um retundo fracasso da civilização. Toque, calor e cheiro fazem parte da natureza humana. Na área médica, a telemedicina tem se afirmado progressivamente como útil, mas só em determinadas condições especiais. Que não se pretenda generalizá-la, porque a medicina se baseia em compaixão, e a compaixão não é um sentimento que se contente em ser visto, a compaixão precisa ser tocada. Ninguém abraçará um robô diante da ameaça da morte. Então, o afeto da relação médico/paciente jamais será substituído por nenhuma máquina inteligente.
E se isso for considerado uma UTOPIA, então estaremos irreparavelmente perdidos.