É normal para quem escreve e publica, sobretudo em revista e jornal, ter experiência com elogios e estímulo, e alguma vez um xingamento.
Há vários anos, publiquei uma coluna em revista sobre cuidados da população com uma baleia encalhada numa praia do Rio, contrastando com a indiferença com relação a um menino que pouco antes tinha morrido numa calçada ali perto.
Reclamações choveram, dizendo que eu não gostava de animais.
Paciência, porque esses mal-entendidos não adianta explicar.
Naturalmente em criança às vezes eu era xingada por alguma malcriação: botar a língua pra avó (que eu, aliás, adorava), subir de novo na jabuticabeira e não conseguir descer, obrigando o jardineiro a vir com escada e me tirar de lá, chamar a mãe de “chata” quando era hora do banho e eu queria brincar no pátio um pouco mais.
Mas eis que outro dia fui xingada em Gramado, minha cidade adotiva, que frequento há décadas, onde criamos um pequeno paraíso particular: saindo do supermercado que frequento, guardei as compras no porta-malas e, quando estava entrando no meu carro, metade do corpo já lá dentro, vi passar na calçadinha em frente um casal de uns 50 anos, de máscara, sacolinhas do súper na mão.
Então ele indica a placa do meu carro pra mulher e diz: “Ó, Porto Alegre”. Eu, geralmente gentil, começo a abrir um sorriso, quando ele me aponta a mão e vocifera: “Porto Alegre, né? Volta pra lá, e não vem mais pra cá pra trazer doença!!”.
Em geral minha coragem é menor do que meu tamanho, mas fiquei furiosa e respondi: “Eu tenho casa aqui, seu grosso, e devo pagar mais imposto do que tu!!!”.
A mulher puxou o herói pelo braço e eu entrei no carro, seguimos nossos caminhos.
Primeiro fiquei atônita; depois chateada; chegando em casa, já estava rindo sozinha: ainda bem que o Vicentão não estava junto.
Mas me ficou a preocupação: esse vírus não só nos faz adoecer de uma terrível doença que está transformando o mundo – sobre o qual se estende como uma sombra densa e pegajosa –, ele também ataca economia, convívio, projetos e sonhos, e além disso nos faz adoecer psicológica e moralmente.
Virão – estão vindo – ondas de medo e paranoia, desinformação e raiva, bairrismo e xenofobia.
Cidades se temendo, países se odiando, pessoas caluniando e desprezando umas às outras.
Nesse sentido, a pandemia coronada não vai terminar tão cedo: pode estar havendo solidariedade e afetos reencontrados, reinvenção de muita coisa boa, mas talvez ele nos deixe com feias sequelas morais. O xingamento em Gramado me fez pensar nisso – com tristeza.