Cada profissão tem um linguajar próprio e, dentro de algumas profissões, até há facções com termos tão peculiares que os não especialistas se atrapalham. Leiam um relatório psiquiátrico de encaminhamento de um paciente cirúrgico e descobrirão do que estou falando.
Um dia, atendendo a um velho e brilhante desembargador com um tumor avançado, ouvi dele a queixa de que nós, médicos, nos comunicamos com vocabulário exclusivo, como se pertencêssemos a uma casta tão especial que não se permite usar uma linguagem popular. Argumentei que todas as áreas técnicas têm seus termos específicos, mas que, obviamente, esse linguajar diferenciado não poderia ser usado nas relações com os pacientes porque, além de afetada, seria inútil como veículo de comunicação, e que eu me esforçava por me fazer entender e ficava sempre perscrutando o olho do paciente na busca de sinais objetivos de entendimento. Mais do que isto, eu ensino aos alunos e residentes que sempre que o paciente não entendeu o recado é culpa exclusiva do médico que não fora capaz de decodificar sua linguagem.
O que me pareceu injusto e merecia uma resposta foi o fato da queixa ter vindo de um advogado. Respondi que de qualquer outra profissão eu aceitaria a crítica com mais naturalidade, mas não dessa categoria de incomunicáveis que são capazes de frases inteiras usando palavras desconhecidas, ou pior, empregando palavras reconhecíveis, mas com significado diferente ou oposto.
Ele riu, debochado, coçou a barba branca com a serenidade dos sábios e disse: “Pois, meu doutor, vou lhe contar uma história que deve ficar como um segredo entre nós porque reforça sua opinião, mesmo que ela não precise de nenhum reforço, até porque a única frase que me encantaria ouvir, a de que a lesão era benigna, o senhor não foi capaz. Pois bem, quando jovem, trabalhei durante alguns anos numa cidade do Interior. Numa tarde da primeira semana, entrou no meu escritório uma agricultora humilde, com um envelope pardo embaixo do braço e, ao perguntar-lhe em que poderia ajudá-la, ela resumiu: “Meu marido é mental, aqui está a prova da mentalidade dele (e entregou-me o tal envelope), eu sou o homem da casa e eles querem tomar o meu fogão!”. Com a facilidade de indignação que têm todos os jovens, assumi o caso e prometi que, no fim de semana, redigiria um arrazoado para levarmos ao juiz e que aquele absurdo seria revertido. No final do domingo, revisei orgulhoso o documento datilografado em 23 laudas caprichadas. Quando resolvi dar mais uma lida no processo, me dei conta de que aquela redação prolixa e afetada não acrescentara nada àquelas quatro frases: marido mental, aqui a prova da mentalidade dele, sou o homem da casa e eles querem tomar meu fogão. Curioso é que precisei da sua contestação para finalmente fazer uma catarse desse sentimento que, passados 48 anos, ainda guardava como um segredo meu. Agora que já me confessei, vê se aumenta a dose do analgésico porque senti uma dor excruciante na noite passada!”.
Havia comiseração e algum remorso quando aumentei a prescrição de morfina. Nada mais constrangedor para a medicina moderna do que esta queixa num hospital, sendo a dor, como é, a linguagem universal mais atroz.