Sempre gostei de autobiografias, por várias razões. A primeira é que, por elas, os medíocres não se arriscam, o que, convenhamos, já é uma triagem promissora. Desde algum tempo, conversando com amigos de diferentes idades e que tinham lido os mesmos livros, me dei conta que, com a idade passando, a valorização das virtudes vai, progressivamente, se modificando. Dê a um jovem a biografia do Steve Jobs e ele concentrará o encanto pelo espírito aventureiro, destemido e inovador deste grande ícone da modernidade líquida. Empreste-lhe Vivir para Contarla, e ele lhe devolverá no segundo dia, saturado do intimismo que te seduz na literatura de Gabriel García Márquez.
E por que é assim? Porque nós mudamos nossos gostos em relação ao que pensávamos na juventude (nem discuto se regredimos ou sofisticamos e nunca assumiria que sofisticamos porque quero que os jovens leiam a crônica até o fim), mas, se registrarmos o que pensávamos na juventude, nem nos reconheceremos na maturidade.
Outra diferença óbvia é a tendência que o biografado idoso tem de ser agradecido, como se idade corroesse as amarras da soberba, liberando a doçura do reconhecimento.
Essa necessidade de admitir gratidão transborda das biografias e derrama nos discursos de agradecimento dos velhinhos homenageados que, tendo ultrapassado a preocupação limitadora de serem populares, seduzem pela espontaneidade.
Quando recentemente sentei para rascunhar o discurso em agradecimento a uma homenagem que recebi de uma sociedade de cirurgia torácica, percebi o quanto e a quanta gente teria de agradecer, convencido que ninguém passa pela vida sem que, em algum momento, alguém tenha sido decisivo ao estender-lhe a mão.
Escolhi um mestre da cirurgia para representar a legião dos indispensáveis: “Nunca vou esquecer, e todo inverno esta lembrança me machuca, da madrugada de 18 de agosto de 1977, quando entrei no quarto 201 do velho Pavilhão Pereira Filho e, por um instante, um sorriso encheu o rosto arfante e sudorético do mestre Ivan Faria Correa que, ao me ver, anunciou: ‘Que bom que você chegou a tempo, agora eu não morro mais!’. A extensão do infarto era maior do que a esperança e, quando amanheceu, eu já tinha chorado tanto que não conseguia mais engolir a saliva com a dor física da perda.
Uma pena ter perdido meu primeiro mestre, justo quando ele confiava que eu seria capaz de evitar. Anos depois, entendi que a maior dor fora a extemporaneidade da morte ter-me roubado a chance de dizer o quanto eu lhe era grato pelo jeito paternal com que me ensinou e protegeu”.