Foi em 22 de fevereiro de 2023 que o Brasil teve noção de que nem tudo são flores (e uvas) na serra gaúcha. Naquela noite, 207 safristas que trabalhavam em parreirais em Bento Gonçalves foram resgatados de uma pensão, onde eram mantidos em condições apontadas por fiscais como insalubres. A denúncia foi feita por três deles que fugiram do local e foram em busca de policiais rodoviários federais, que retornaram ao local acompanhados de uma força-tarefa composta por policiais e fiscais do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho (MPT).
Foi o maior resgate de trabalhadores da história gaúcha. O caso ganhou o mundo por meio de uma série de reportagens do jornal Pioneiro. Aos repórteres Vitória Leitzke e Porthus Junior, os fugitivos relataram que não receberam o salário prometido, que estavam submetidos a uma rotina de comida rançosa, banho frio, jornadas de trabalho de até 12 horas diárias e endividamento constante para comprar materiais de higiene e alimentos, que eles mesmos tinham de adquirir num mercado indicado pela própria empresa, a preços exorbitantes, porque não lhes foi fornecido nem água para tomar na lavoura. Alguns dos safristas, quase todos baianos, asseguraram terem sido agredidos ao reclamarem das condições de trabalho.
Outras reportagens, das quais participei, mostraram que os safristas eram contratados por uma rede de empresas ligadas a um mesmo empresário, também baiano, que os colocava na pensão insalubre. Ele intermediava a mão-de-obra, escassa, para atuar nas vinícolas serranas. A teia de contratos abrangia também outros setores, como abate de aves. Em todos havia queixas de jornadas exaustivas e más condições de trabalho. O empresário, que chegou a ser preso e depois foi solto, garante que jamais maltratou os trabalhadores.
As vinícolas acabaram recebendo multas milionárias e são alvo de diversos pedidos de indenização por parte dos safristas resgatados. É necessário dizer que a situação mudou, para melhor, neste um ano. As três empresas produtoras de vinho que tinham contratado os trabalhadores mudaram os procedimentos. Visitamos a Serra para conferir e vimos como associados de cooperativas construíram residências confortáveis para os safristas. Os empresários garantem que só contratam agora com carteira assinada, mesmo para trabalho que dura menos de um mês (a vindima). A própria indústria do vinho adotou fiscalização intensa sobre os intermediários e métodos de compliance, para evitar a repetição de episódios como o de 2023, que causaram prejuízo internacional na imagem desse setor, o mais notório da serra gaúcha.
E como está a investigação criminal sobre o caso? Faz praticamente um ano que a Polícia Federal abriu inquérito e até agora não terminou. Os policiais coletaram dezenas de testemunhos, mas aguardam provas técnicas. Entre elas, perícias em mensagens de celulares apreendidos e vídeos de câmeras de monitoramento na região da pensão onde os safristas estavam abrigados. Entre os investigados estão empresários que intermediaram a contratação da mão-de-obra, o dono da pensão e até um PM que prestava segurança para os dois e que foi acusado pelos trabalhadores de espancá-los e ameaçá-los de morte. Pelo que apuramos, será difícil a PF concluir o inquérito nesta semana cabalística.