Milhares de indígenas gaúchos podem ficar sem terra, caso vingue o marco temporal, que prevê que só áreas ocupadas por povos originários antes de 1988 podem ser demarcadas. O alerta é da nova coordenadora regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) no Rio Grande do Sul, Maria Inês de Freitas. Ela própria é caingangue, a primeira mulher do seu povo a ocupar esse cargo.
O projeto do marco temporal foi aprovado por 283 votos a 155 na Câmara dos Deputados na noite de terça-feira (30) e agora vai ao Senado. Caso seja consagrado, o cálculo é de que os indígenas estejam sob risco em 871 das 1.393 reservas existentes no Brasil. Isso porque essas 871 seguem com pendências para regularização. A estimativa é do setor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Óbvio que, mesmo que o marco temporal vingue, cada caso desses 871 será analisado individualmente, para verificar se existiam lá indígenas antes de 1988. No Rio Grande do Sul, as maiores áreas permanecerão intocadas pelo projeto. É o caso das reservas da Guarita (entre Tenente Portela, Miraguaí e Redentora, próximo à fronteira com a Argentina) e de Nonoai (no norte do RS), que foram criadas há mais de 60 anos. Outras receberam doações de terras municipais (públicas) para que os índios ali vivessem e também não correm risco de extinção, diz Maria Inês. É o caso das reservas do Rio da Várzea, Cacique Doble, Votouro, Ligeiro, Carreteiro e Inhacorá.
Só que alguns grandes aldeamentos podem ser extintos, caso a interpretação da Funai sobre o marco temporal esteja correta. É o caso da Serrinha (entre Ronda Alta, Três Palmeiras, Constantina e Engenho Novo), de Iraí, Ventarra (em Erechim) e Monte Caseros (entre Muliterno e Ibiraiaras). Todas ficam no norte do Rio Grande do Sul e foram criadas nos anos 1990, após a constituição de 1988 admitir que os caingangues tinham sido expulsos dali irregularmente, nos anos 1960. Detalhe: elas já estão homologadas, mas o risco existe porque os indígenas foram para lá após 1988.
Pior ainda é a situação de áreas indígenas não-homologadas, salienta Maria Inês. É o caso da aldeia caingangue no Morro do Osso, em Porto Alegre, do acampamento guarani na Estância do Arado (na zona sul da Capital), da Floresta Nacional de Canela, onde vivem caingangues, e da Floresta Nacional de São Francisco de Paula, na qual mora uma tribo xokleng, além de tantos outros que estão longe da legalização, mas são habitados por indígenas.
A esperança de Maria Inês é de que o Senado barre o projeto. Ou que o Supremo Tribunal Federal (STF), onde tramita uma ação questionando o marco temporal. A votação está parada na Suprema Corte desde 2021, empatada em um a um, mas pode ser retomada no dia 7 de junho. Analistas dizem que, caso o STF decida que o marco temporal é inconstitucional e o Senado ainda não tiver votado o tema, valerá a decisão do Supremo.
Consultamos a Frente Parlamentar da Agricultura, propositora da proposta do marco temporal. A entidade informa ao colunista que o projeto impacta apenas áreas não homologadas e não haverá revisão de processos já demarcados. Os direitos indígenas serão preservados, como manda a Constituição, conclui a FPA. Questionamos o Ministério dos Povos Indígenas, mas ainda não obtivemos resposta. Resta ver a interpretação do STF a respeito.