Voz grave, como o momento exigia, o juiz Orlando Faccini Neto anunciou ao entardecer de sexta-feira (10) a prisão dos quatro condenados pelo incêndio que matou 242 pessoas na boate Kiss. A tragédia foi em janeiro de 2013 e desembocou num júri que durou 10 dias, o maior da história gaúcha. Só que o magistrado foi interrompido na leitura por Jader Marques, defensor do réu Elissandro Spohr.
O advogado apresentou então um habeas corpus, impedindo a prisão daquele acusado e dos outros três réus, que tinham acabado de ser sentenciados a penas que variam dos 18 aos 22 anos de prisão.
O juiz mal disfarçou a contrariedade, mas não foi surpreendido. Ele confidenciou a colaboradores que já esperava um habeas corpus. Só não imaginava que fosse tão rápido, que saísse durante a leitura da sentença.
Foi rapidíssimo. Conforme informado a este colunista, o hábeas foi interposto às 14h59min e enviado às partes às 17:49min. O desembargador Manuel Martinez Lucas, que impediu a prisão dos condenados, leu, decidiu e redigiu seu despacho em pouco mais de duas horas, veloz para os padrões do Judiciário. Contribuiu para isso a sagacidade de Jader, que já sabia que o juiz Orlando costuma dar penas pesadas e se antecipou.
A manutenção dos réus em liberdade está longe de ser uma manifestação isolada do desembargador Lucas. Ele é o relator, no Tribunal de Justiça (TJ), dos acórdãos que envolvem o crime ocorrido na Kiss (isso se chama critério de prevenção). E, em suas decisões, Martinez Lucas tem mostrado um padrão. Foi favorável à libertação dos réus, em 29 de maio de 2013, após eles cumprirem quatro meses de prisão. Ele e seus dois colegas desembargadores da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça foram unânimes no sentido da soltura dos réus.
Em 22 de março de 2017, Martinez Lucas votou pela transformação do caso Kiss em homicídio culposo (sem intenção de matar). Queria que os réus fossem julgados por um juiz singular, sem jurados. Nesse ponto, ele foi voto vencido. A 1ª Câmara manteve o júri popular — mas, por outro lado, retirou todas as qualificadoras do caso, considerando que houve homicídio simples.
Então a defesa dos réus, incluindo Jader, recorreu ao 1° Grupo Criminal (que junta a 1ª e a 2ª Câmara). Deu empate, 4 a 4, com decisão pró-réus. Ficou decidido que não haveria júri. O júri popular da Kiss só aconteceu porque, em 2019, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu nesse sentido. Talvez isso tenha ajudado nas condenações, porque jurados costumam julgar com mais emoção do que um juiz isolado.
O desembargador Martinez Lucas também votou a favor de que o júri permanecesse em Santa Maria, mas seu voto foi superado pelo de colegas, que transferiram o julgamento para Porto Alegre. Temiam distúrbios na cidade onde ocorreu a tragédia.
Foi sem surpresa, portanto, que os promotores David Medina e Lucia Callegari viram o habeas corpus ser concedido pelo desembargador Lucas. O magistrado considerou que os réus não oferecem perigo e nem se envolveram em novos crimes desde o incêndio da Kiss. Por isso, justificou, não há razões para mantê-los presos enquanto aguardam recursos.
Tampouco espantou aos promotores que o habeas corpus tenha sido impetrado por Jader Marques. Filho de desembargador (já falecido), o advogado tem excelente trânsito no Tribunal de Justiça.
O desembargador Martinez Lucas tem outras decisões similares, inclusive envolvendo o mesmo magistrado do caso Kiss. Em 2017, o PM Alexandre Curto dos Santos foi condenado a 12 anos de prisão pelo assassinato do sem-terra Elton Brum, morto pelas costas com um tiro de espingarda, em 2009. A sentença foi do juiz Orlando Faccini Neto (o mesmo do caso Kiss). Uma semana após o julgamento, o desembargador Martinez Lucas concedeu habeas corpus, mandando libertar o condenado. O PM acabaria preso definitivamente só em 2021.
Ou seja, não é a primeira vez que o desembargador contraria decisão idêntica, do mesmo juiz. Aguardam-se cenas dos próximos capítulos.