A jornalista Bruna Oliveira colabora com a colunista Gisele Loeblein, titular deste espaço.
À primeira vista, você pode até não associar o que um chefe de cozinha tem de relação direta com o campo, mas traduzir em um prato todo o caminho que o alimento percorre na cadeia produtiva até chegar ao cliente final é a receita com propósito do chefe Carlos Kristensen. No comando dos restaurantes UM Bar&Cozinha e Hashi, em Porto Alegre, e do projeto Internacionalmente Local, ele monta cardápios a partir da sazonalidade das matérias-primas locais, priorizando alimentos cultivados em propriedades familiares e com manejo sustentável. O resultado são criações originais e que contam histórias.
– O produto, claro, é o tátil que a gente coloca no prato, mas me interessam muito as pessoas que produzem esse alimento – diz.
Na entrevista abaixo, conheça mais sobre o trabalho e a trajetória do profissional:
Qual a ligação do seu trabalho com o campo e a agricultura?
É o início do nosso prato, é a nossa despensa. No nosso entendimento, o prato começa no campo, no mar, no produtor, no pescador, e respeita as safras e as sazonalidades dos produtos. Não adianta criar um cardápio com algo que está fora de época e trazer de muito longe porque não faz sentido algum para a nossa gastronomia hoje. O que a gente cozinha vem de alguém que produz. Para a gente, não faz sentido colocar pratos de grandes volumes e trazer produtos que viajem tanto para chegar até aqui, mas sim colocar o maior volume de alimentos que estão no seu melhor momento, onde também o preço está mais em conta por estarem mais abundantes e fazer essa roda girar.
Como é o processo de escolha dos fornecedores?
Em 2011, eu estava no meu restaurante, faltou o comprador ou alguma pessoa do recebimento, e comecei a receber todas as caixas de verduras e hortaliças que chegavam. Percebi que eu não sabia de onde vinham e nem por quem eram produzidas. Ali eu me dei conta que o meu olhar estava do prato para frente. Eu estava preocupado em fazer um prato apenas gostoso para o cliente. Me dei conta que o prato ser gostoso não é o objetivo, ele é um resultado. O todo tem que fazer sentido. A partir dali, busquei estudos, o mapa do Estado, e comecei a cruzar tudo: onde estava o italiano, o português, o quilombola, o gauche da Fronteira, quais são as nossas tradições, o que foi mudado com o tempo, o que tem de original... e comecei a ir para o Interior conhecer pessoas. O foco são as pessoas. O produto, claro, é o tátil que a gente coloca no prato, mas me interessam muito as pessoas que produzem esse alimento.
O que é o projeto Internacionalmente Local?
É um projeto que surgiu quando comecei a ter essa busca por pessoas e produtos da nossa região. De organizar que região produz o quê e em qual época. Comecei a me deparar com o pequeno produtor, com um fazer bem artesanal, de pequenas famílias que tinham até vergonha de precificar e vender os seus produtos. Então montamos um empório no UM Bar&Cozinha chamado Internacionalmente Local, que é onde fica o resultado desse trabalho, tanto de itens de criação e produção própria, quanto de produtos de pequenas agroindústrias e artesanais feitos pelo pessoal que divulgamos ali.
Os produtores também passaram a procurar o projeto?
Sim. Começamos a atrair muita gente e conhecer muita coisa. Tem produtos que já estão prontos e tem outros que começamos a gerar uma demanda maior. Damos dicas de apresentação, de negócio. O projeto visa muito isso. Chegamos a ter 80 famílias envolvidas no abastecimento do Empório e dos restaurantes. Das pequeníssimas a outras já bem estruturadas, mas de produtos que têm essa pegada artesanal e local.
Ao saber a origem dos alimentos, o consumidor valoriza mais o que está comendo?
Sim. Muitas vezes tem que vir com reforço de uma explicação. Mas se tu vens com uma história de o que representa, como preparou, aí faz sentido. Quando a gente vem com o nome e sobrenome do produtor, do local, conta uma história e o cliente come, faz todo sentido. Ser saboroso e vazio não bate mais com o que eu penso de comida. Quero trabalhar para ter uma qualidade de vida, para que os colaboradores tenham qualidade de vida e para que os produtores envolvidos com a gente tenham qualidade de vida. Que todos sejam bem remunerados e que a gente como empresa deixe um lugar melhor.
O prato ser gostoso não é o objetivo, ele é um resultado.
CARLOS KRISTENSEN
Chefe de cozinha
Como é o processo de buscar o alimento direto na fonte?
Até pouco antes da pandemia, eu entendi que o meu lugar como cozinheiro, chefe e dono de restaurante era muito mais importante fora da cozinha do que dentro dela. Se eu não viajar, conhecer as pessoas, conhecer os lugares, os produtos, saber como é feito e produzido, não vai ter sentido de novo. Vi que tenho que ter um tempo para sair. Mas veio a pandemia e ninguém visitou mais ninguém. Empobrecemos em termos de produto, de relacionamento, porque todo mundo se fechou, mas agora estamos buscando retomar e buscar coisas novas.
Um dos produtos locais que inclui nos pratos é o butiá. Por que essa fruta e quais os principais pratos?
O butiá é um clássico exemplo de uma riqueza. O primeiro uso foi quando queríamos ter uma mostarda, um molho forte ou um condimento para servir. Não só pela cor, que é perfeita, mas pela acidez, por ser um fruto mais picante. Começamos a fazer testes e lançamos nossa mostarda de butiá. Foi um sucesso gigante no restaurante e um dos primeiros produtos de marca própria do Internacionalmente Local. Usamos um butiá que vem de Antônio Prado, da família Bellé. Um produto ícone que compõe pratos muito clássicos nossos, como o croquete de cordeiro, e dali começamos a fazer várias outras brincadeiras. Temos sorvete, molho holandês e drinks. É um produto nosso que o único uso, generalizando, era colocar na cachaça. E aí você começa a apresentar em pratos bem elaborados várias outras possibilidades e as pessoas gostam muito. E esse é o propósito.
A gastronomia conquistou um papel social?
Muitíssimo. Ela reúne tudo: negócios, prazer, férias, viagens, pessoas, famílias, eventos. Hoje fica muito claro que a gastronomia tem um papel social que vai desde aproximar o campo da mesa e de formar pessoas com possibilidade de trabalho, mas também uma função econômica. Uma gastronomia pensada muda o cenário de uma região. Nenhuma comunidade se formou onde não pudesse plantar, pescar ou criar comida. Onde não é possível isso, não tem gente. Ali já começa o desenvolvimento econômico de uma região pela comida. E tem um papel político enorme a partir das nossas escolhas. A comida define um povo, e o que se planta define o que se produz. Vejo a comida hoje como uma atividade absurdamente transformadora.