O barão Otto Von Bismarck, "o chanceler de ferro" que, de um grupelho de reinos anárquicos fez da Alemanha um pujante Estado nacional no século 19, dizia sempre que as pessoas não conseguiriam dormir "se soubessem como são feitas as leis e as salsichas".
Aqui, sabemos como se fazem as leis. Agora, conhecemos como fazem salsichas ou outros embutidos. E, até, como carne pestilenta pode ter cara de fresca e apetitosa.
Sim, pois a Operação Carne Fraca, da Polícia Federal, desvenda como tudo tende a nivelar-se por baixo, pela fraude, em busca do falso e enganoso. Os falsários se transformam em paradigmas da sociedade. São "modelos usuais" nos partidos ou na política e, como tal, se enroscam em boa parte da atividade privada como serpentes. Sempre à nossa espreita, só deixam de ser perigosas quando esmagadas pela cabeça - esmagadas pela lei em defesa da sociedade.
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A fraude desbaratada pela Polícia Federal afeta diretamente a saúde de todos nós, mas o escândalo pernicioso é outro. É a tentativa de nos desviar do perigo maior (os alimentos deteriorados) e culpar a investigação por "manchar nossa reputação" mundo afora, impedindo exportações por bilhões de dólares…
O que degrada a imagem do país no Exterior é descobrir a fraude ou é a fraude em si? Descobrir agride ou revela zelo?
A culpa por manchar nossa "imagem" é de quem? Das empresas que cometiam a fraude e encobriam tudo? Ou da Polícia Federal que descobriu e revelou o horror?
Devemos só aparentar "boa imagem", ou fazer que nossa realidade de exportadores seja concreta, não só mera virtualidade copiada do irreal?
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Ao se conhecer o escândalo, Temer reuniu os embaixadores dos países compradores e, para mostrar a excelência de nossa carne e salsichões, os levou a uma churrascaria de Brasília. Mas ali serviram só carne argentina, uruguaia e australiana… Em vez desse infantil deboche, por que Temer não se reuniu com os donos dos frigoríficos para definir condutas?
Ao contrário, ele e o ministro da Agricultura circunscreveram o escândalo à corrupção "pontual" de fiscais ou de "deslizes" de certos frigoríficos, salientando "os prejuízos" que desbaratar a fraude trará ao país. Assim, o culpado seria a PF por descobrir a fraude, não os fraudadores…
Ainda não se sabia dos "grampos" nos telefonemas em que o atual ministro da Justiça, então deputado pelo PMDB do Paraná, aparece como "o bom velhinho Serraglio", em quem os trapaceiros confiavam.
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Nenhuma palavra sobre a irresponsabilidade empresarial desse voraz capitalismo dedicado só a lucros e resultados, oco e sem grandeza. O empresário verdadeiro não falsifica nem suborna. Age corretamente.
Ou querem implantar o Estado Policial, com repressão permanente, um fiscal vigiando cada cidadão ou toda atividade de cada empresa?
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A surpresa brutal, porém, ocorreu no Supremo Tribunal. Num insólito ataque à Operação Carne Fraca e à Lava-Jato, o ministro Gilmar Mendes afirmou que "não há mais anteparos", pois a Polícia Federal e a Procuradoria da República "perderam os freios".
Acusou a Procuradoria Geral (ou o procurador Rodrigo Janot) de "cavalgar escândalos e abusar do poder". Chamou a divulgação das investigações de "crime para entreter a opinião pública ou demonstrar autoridade" e bradou: "A Procuradoria da República não está acima da lei".
Logo, num tom jamais visto nos altos tribunais, Gilmar disse que "o Supremo não pode transformar-se em fantoche da Procuradoria da República" e, com ar melancólico se queixou: "E ainda não querem que se aprove a lei do abuso de autoridade".
No dia seguinte, a irônica resposta de Janot mostrou que "impunidade X Justiça" continuam a enfrentar-se nos palácios de Brasília. Chamou as palavras do ministro do STF de "disenteria verbal" e, numa alusão à proximidade de Gilmar Mendes e Temer, frisou:
– Fugimos dos círculos que cortejam desavergonhadamente o poder político e, na sofreguidão por afagar os poderosos de plantão, perdem o referencial da decência e retidão.
De Bismarck até hoje são 150 anos, mas as salsichas e as leis continuam sendo feitas da mesma forma.
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