Susan Sontag escreveu, em 1978, que todos nascemos com dupla cidadania: temos acesso ao reino dos saudáveis e dos doentes. Embora tenhamos preferência por utilizar o melhor passaporte, mais cedo ou mais tarde seremos obrigados a entrar no outro domínio. Ao abordar doenças, a ensaísta americana se referia à tuberculose, símbolo do século 19, e ao câncer, de que padecia enquanto elaborava suas reflexões – e terminou por matá-la, em 2004, depois de duas vezes curada.
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Sontag dizia que a maneira mais saudável de encarar uma doença é a mais pura e literal. Mas documentos culturais como a literatura, o discurso médico e o próprio imaginário social trataram de metaforizar a condição dos pacientes de certas enfermidades. Tais males viraram tabus, doenças que sequer podiam ser chamadas pelo nome. E isso não apenas porque eram consideradas sentenças de morte, mas por serem tidas como obscenas, abomináveis.
A perversidade dessa visão mitologizante tornava os pacientes seres humanos de outro tipo. Seus males teriam causas supostamente passionais, fruto de uma incapacidade de expressar determinado afeto ou devido a um excesso disso. Tanto a tuberculose quanto a insanidade eram vistas socialmente como doenças de confinamento: os pacientes entrariam em um mundo paralelo, com regras especiais.
Daí a metáfora da "viagem psíquica" que nos traz ao espetáculo O Lugar Escuro, em cartaz no Auditório do Instituto Goethe, em Porto Alegre, até dia 3 de abril. A partir de um livro da escritora Heloisa Seixas sobre sua experiência pessoal com o Alzheimer da mãe, o roteiro – também de autoria dela – coloca em cena os sentimentos conflitantes de personagens sem nome, referidas no texto como Velha, Mulher e Jovem. Na montagem gaúcha do diretor Luciano Alabarse, os papéis são, respectivamente, de Sandra Dani, Vika Schabbach e Gabriela Poester. A peça teve uma primeira versão no Rio, em 2013, com direção de André Paes Leme.
Embora não pareça evocar deliberadamente uma metáfora específica – pelo contrário, aproxima-se do modelo de história de superação inspiradora voltada ao grande público –, a matéria-prima ficcional é passível de uma leitura figurativa. Aqui, a metáfora não é uma estratégia voltada à estigmatização social da vítima, mas um recurso produtivo de descoberta e entendimento. A certa altura, a neta diz à mãe que a avó com Alzheimer "não existe mais". "O que existe é uma entidade que tomou o lugar dela", reflete a personagem vivida por Gabriela Poester.
A associação com a noção de viagem – que Sontag identifica como relacionada à doença mental – está presente desde o início. A Mulher constata a "virada" da Velha no dia em que esta retorna de uma temporada em Caxambu e, mesmo já em casa, faz menção de descer para tomar café da manhã, como se ainda estivesse no hotel. O diagnóstico se dá no mesmo dia em que a Jovem se prepara para morar fora de casa. Os tempos estão mudando, como diria Bob Dylan, mas a Velha refugia-se em um mundo próprio, assombrado pela obsessão com números que repete como se fosse um mantra insuportável. Sua ligação com a realidade reside nas lembranças do passado: a relação com a própria mãe (a bisavó da história, portanto), a casa onde morou na infância, uma marchinha cantada por Carmen Miranda. Pelo distanciamento afetivo (a mãe está próxima demais), é novamente a Jovem quem traz uma chave de compreensão, ao relatar uma pesquisa americana segundo a qual pessoas solitárias e que sofreram uma grande perda têm mais propensão em desenvolver Alzheimer.
Estão em cena três mulheres que respondem de formas diversas ao desafio de seguir em frente sem os homens da família, que as abandonaram. O efeito do tempo é generoso: a jovem é mais assertiva com a independência do que a mãe e muito mais do que a avó. Se a doença pode ser um confinamento, a família também pode. Cada uma precisa desenvolver do zero sua estratégia individual de escape, mas a mensagem que será revelada no desenvolvimento da trama é que, juntas, elas podem muito mais. É um pouco piegas, mas também é verdadeiro.
Há que se ressaltar a admirável atuação de Sandra Dani, uma das mais experientes atrizes em atividade na cena gaúcha, no papel da senhora com Alzheimer. Sua personagem é repleta de carisma. Com ela, sentimos compaixão, pena, medo e, por fim, carinho. Fazendo do palco o seu lar, Sandra constrói uma mulher nuançada, complexa, desafiando categorias estáveis.
Vika tem a missão de traduzir o processo da difícil redenção pelo qual passa a Mulher ao tentar aceitar a doença da mãe. Na maior parte do tempo, a personagem demonstra inconformismo e até raiva com a condição familiar. Está sempre à flor da pele, prestes a explodir – e explode. Seus arroubos, uma orientação recorrente em espetáculos recentes de Alabarse, mereceria um contrapeso de sutileza. Gabriela completa o constante elenco com frescor. Seu papel, aparentemente marginal em relação ao conflito entre a Mulher e a Velha, traz uma lufada de sensatez à trama e contribui para uma reviravolta de sentimentos que termina por alterar a ordem das coisas.
O Lugar Escuro aproxima a produção cênica de Alabarse aos dramas da vida comum. Trata-se de um espetáculo "de câmara", cujo intimismo cria uma cumplicidade com o público que uma fabulação mais ambiciosa provavelmente não conseguiria. Embora se preste à leitura metafórica que tentei empreender aqui, você pode dispensar tudo e ficar apenas com a lição de vida. No final das contas, Susan Sontag tinha razão: às vezes, uma doença é apenas uma doença.
O LUGAR ESCURO
Sextas e sábados, às 21h, e domingos, às 18h. Temporada até 3 de abril.
Após as sessões de sexta, haverá debates com membros da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (dia 25/3 com Carmem Keidan e dia 1º/4, com Zelig Libermann).
Auditório do Instituto Goethe Porto Alegre (Rua 24 de Outubro, 112), fone (51) 2118-7800
Ingressos: R$ 40. Desconto de 50% para estudantes, idosos e classe teatral. À venda na bilheteria do local, duas horas antes de cada sessão.