Carmela L. V. é uma jovem que, como muitos brasileiros entre 16 e 17 anos, pergunta-se qual é o seu lugar no mundo e que sentido dará à vida que resplandece no horizonte. Ela se sente enamorada pela filosofia, mas o que a atrai, mesmo, é o direito e particularmente a magistratura. Como costuma fazer, confidenciou aos pais seu flerte ainda tímido com o ofício dos juízes e juízas. A reação deles não poderia ser mais empolgada, mas de pronto Carmela ponderou que uma dúvida lhe atravessava o caminho: seria ela verdadeiramente capaz de vencer seus próprios vieses no momento de decidir e sentenciar? A mãe, de imediato, deu a ela a melhor resposta possível: só uma pessoa que se faz essa pergunta está vocacionada para julgar. Porque, antes de mais nada, se põe a julgar seus próprios condicionamentos.
Este é um exercício importantíssimo para muitas outras atividades. O jornalista precisa estar sempre alerta contra o chamado “viés de confirmação”, e nisso não difere muito do cientista. Ambos partem de uma hipótese e conduzem suas apurações no sentido de confirmar, rever ou derrubar a suposição inicial. Na teoria, é muito fácil. Mas a verdade é que nossa visão de mundo e nosso quadro de referências atua a todo momento no sentido de abrir ou fechar nossos olhos, conforme os achados que encontramos agradem ou não a nossos gostos, vaidades, preferências. Tourear os impulsos de nosso ego é sabidamente difícil. Mas em nenhum outro campo o exercício da autocontenção é tão criticamente importante quanto na magistratura. Afinal, é para onde afluem todos os conflitos, disputas, postulações envolvendo trabalho, família, renda, saúde, patrimônio – e principalmente liberdade.
Em regra, os juízes brasileiros de primeira e segunda instâncias são discretos, não se pronunciam sobre matéria que está ou pode vir a estar em julgamento e procuram ater-se à letra da lei ou, em casos mais espinhosos, interpretá-la dentro de marcos bem estabelecidos. Não sou réu nem autor de qualquer processo hoje na justiça brasileira, mas não perderia meu sono se isso viesse a ocorrer. Confio nos juízes, na Constituição e nas leis que os guiam. Sei que, diante de uma acusação contra mim, meu advogado teria acesso ao processo. Sei, também, que se não concordasse com a sentença, teria o direito de recorrer a outra instância da Justiça. Acredito, igualmente, que os juízes de instâncias inferiores (que eu prefiro chamar de juízes de verdade) não aceitariam nenhuma imputação, contra mim, de crime que não estivesse tipificado na lei.
Como, então, e por quê, um sistema de Justiça sóbrio e que se comporta como súdito da lei convive tão placidamente com uma suprema corte que viola todos esses princípios e comandos constitucionais?
Precisamos falar sobre o STF.