Algum dia vão nos contar como eram árduas e épicas as marchas dos pioneiros desde Laguna até Colônia da Sacramento, a pé pelo litoral inóspito. Algum dia vão nos contar como o madeirense Jerónimo de Ornelas foi um deles e de que forma, na altura da foz do rio Tramandaí, ele enveredou para oeste, rumo às coxilhas da várzea do Gravataí e chegou até as fraldas do morro que batizou de Santana, instalando-se em 1732 onde hoje fica o campus da UFRGS. Algum dia nos contarão que a Coroa portuguesa demorou anos até reconhecer-lhe a posse e lhe conceder uma sesmaria de 14 mil hectares desde margem esquerda do Rio dos Gravatás até à margem direita do Rio dos Jacarés, hoje o viscoso e poluído arroio Dilúvio.
Algum dia nos contarão que em 1750 os portugueses e espanhóis assinaram o Tratado de Madri, trocando os Sete Povos Orientais das Missões pela Colônia de Sacramento, o enclave que, em 1680, na maior cara dura, os portugueses tinham fundado na margem do Rio da Prata, em frente a Buenos Aires. Algum dia nos contarão como os guaranis receberam um ultimato para abandonar suas terras ancestrais, suas sete cidades, seus ervais, rebanhos e igrejas construídas sob a coordenação dos jesuítas. Algum dia nos contarão como Portugal planejava ocupar esses Sete Povos com imigrantes trazidos dos Açores superpovoados.
Algum dia nos contarão que quando os tais 60 casais açorianos já estavam às margens do Guaíba, esperando serem conduzidos para as Missões pela via do Rio dos Jacus, eclodiu a Guerra Guaranítica, os indígenas resistiram à ordem espúria e foram à luta. Algum dia nos contarão que os imigrantes açorianos foram largados no descampado onde agora fica a Praça da Alfândega, em choupanas improvisada.
Algum dia nos contarão que num feio dia, o filho de Jerônimo de Ornelas foi vistoriar os limites da propriedade do pai e deu de cara com um acampamento de sem-terra no limite oeste da fazenda, desentendeu-se com o líder do grupo e... o matou sujeito com um tiro.
Algum dia nos contarão que, abalado com o crime, Ornelas abandonou sua terra. Algum dia nos contarão que os açorianos ficaram ao deus-não-dará por mais de dez anos. Algum dia nos contarão que foi só quando o capitão Montanha demarcou as ruas e ergueu alguns prédios - dentre eles, é claro, uma alfândega - que o amontado de casebres começou a virar um simulacro de cidade. Algum dia nos contarão que Montanha agiu por ordem do governador José Marcelino Figueiredo, que na verdade se chamava Manoel Sepúlveda pois, tendo matado um homem em Portugal, foi condenado à morte, trocou de nome e fugiu para o sul do Brasil.
Algum dia nos contarão tudo isso. E algum dia aprenderemos que povo que não sabe de onde veio, não pode saber para onde vai. Só espero que não sejam necessários mais 250 anos para isso.