De toda a espiral de sombras e incongruências que o assombroso Talibã projeta sobre o solo crestado do Afeganistão, a mais perturbadora talvez reverbere já no próprio nome que esse grupo escolheu para se autodenominar. Embora muita gente saiba, não custa relembrar: “talibã” quer dizer “estudante”. Sim, o grupo que baleou a menina Malala na cabeça porque ela ousou querer estudar, que queima livros, que destrói estátuas (não sei se de bandeirantes), que recusa a vacina e quer apagar a história... chama a si mesmo de “Estudantes”.
A mídia ocidental insiste em dizer que os “Estudantes” agem assim porque professam uma interpretação radical do Corão, colocando em prática uma versão especialmente feroz da xaria (o código penal islâmico). É uma meia verdade. Dizer que o Talibã segue à risca os ensinamentos do Alcorão equivale a afirmar que a Bíblia referendava as torturas praticadas pela Inquisição. Já com relação aos supostos radicalismos da letra fria da lei islâmica, talvez não seja despropositado lembrar que há analistas que sugerem que a “commom law” (o direito comum anglo-saxão) foi, ao menos em parte, inspirada pela lei islâmica medieval, após a conquista normanda da Inglaterra, dada a ligação dos normandos com o Emirado da Sicília.
Se a conexão entre a sharia e a common law é sinuosa, o que não se discute é a origem dos movimentos rebeldes do Afeganistão: eles são fruto direto do imperialismo inglês e da sua brutal intervenção na região. Tudo começou com as ditas guerras anglo-afegãs (três ao todo, travadas entre 1838 e 1919) já que o país era um estado-tampão entre a Rússia Czarista e o Império Britânico. Já o Talibã só surgiu em 1994, financiado, armado e treinado pela CIA, pois a região seguia sendo um estado-tampão, só que então a separar a Rússia comunista do imperialismo dos EUA.
Mas o fato é que desde que li o livro da inglesa Mary Renault sobre Alexandre, o Grande, e o “vi” casar-se com a princesa Roxana, da Báctria (no Afeganistão), pois nem o maior dos conquistadores foi capaz de vencer aquele povo; e a seguir li O Homem que Queria ser Rei, de Rudyard Kipling, levado às telas por John Huston, e – acredite se quiser – conversei sobre isso tudo com o cineasta Kevin Reynolds, em plena Ilha de Páscoa (pois ele havia filmado a peça Nanawatai, de William Mastrosimone, e a transformado no filme A Fera da Guerra, sobre a invasão russa ao Afeganistão), fui capturado de vez pela mística do país.
Virei então um estudante de sua história milenar. E não é preciso ler muito para saber que que ele jamais foi vencido – seja por macedônios, persas, britânicos, russos, norte-americanos ou até por afegãos ensandecidos que, ao invés de queimar livros e derrubar estátuas, deveriam estudar mais. Sugiro que comecem relendo o sagrado Alcorão.