Quase todos os dias assisto ao programa Brasil Visto de Cima – nem que seja para flanar acima das baixezas e baixarias que nos cercam. Noite dessas (ontem, pra dizer a verdade), enquanto tiritava de frio e pensava em queimar os móveis, sobrevoei o litoral pernambucano, com suas praias de areias faiscantes, águas translúcidas, barreiras de corais e palmeiras dançando ao vento cálido. Aí lembrei o que um arqueólogo certa vez me falou, meio sério, meio jocoso: “A prova de que o Novo Mundo já estava todo ocupado há 9 mil anos é que havia povos habitando a Patagônia. Eles não estariam vivendo lá se tivesse vaga na Bahia...”.
Depois de pousar, acomodei-me (ainda incomodado) na cadeira do papai, ao lado da lareira crepitante, sob a luminária art déco e, buscando na prateleira de mogno o opúsculo encadernado em couro, pus-me a compulsar esse meu exemplar raro sobre os índios charruas. Sempre venerei os charruas – até fiz um vídeo sobre eles no YouTube e deu quase 1 milhão de views. Os charruas eram irredutíveis, cabeludos e bravios. E sempre enfrentavam os minuanos: tanto seus parentes e fidalgais inimigos quanto os ventos uivantes batizados com esse nome. Ventos que, como ambas as tribos, vêm lá da Patagônia. Sim, amigos, em verdade vos digo: charruas e minuanos – os indígenas que com seus ponchos, chiripás, boleadeiras e o chimarrão inventaram os gaúchos – eram oriundos da Patagônia. Mas aposto que se Porto de Galinhas estivesse disponível, eles teriam ficado lá, se refestelando nas piscinas naturais, comendo caju e abacaxi – e não sorvendo o amargo na cuia em terras geladas.
Inverno é palavra latina. Vem de “hibernus” e quer dizer “entrar em estado de inatividade, reduzindo as funções vitais ao mínimo necessário à sobrevivência”. Portanto, está associada ao ciclo biológico dos animais que entram em hibernação durante períodos de frio intenso. Ou seja: é palavra estrangeira, pois os animais daqui não hibernam como os de lá. Mas o termo já está incorporado ao léxico e não sou eu quem vai sugerir que mudemos para “friaca”.
O fato é que há quem goste do inverno. Minha mulher, batendo queixo aqui ao lado, é uma delas. Meu amigo Vitor Ramil teceu loas e boas à dita estação e formulou a Estética do Frio. Eu também gostava do inverno, mas isso quando era irredutível, cabeludo e bravio feito um charrua. Agora, só gosto se for entre paredes grossas e vidros duplos, como na casa de David Coimbra em Boston. Mas, quando eu estava na merdon e o visitei lá, ele me negou teto e sugeriu que eu procurasse um albergue. Ainda bem que era verão – essa estação que dura 12 meses em Pernambuco e que os charruas e eu só conhecemos por cima, sob o uivo do minuano.