Dentre as várias cenas deslumbrantes indiretamente produzidas pelo velho novo vírus – todas na mesma linha –, nenhuma me pareceu mais hipnótica do que a que veio do Japão: cervos repousando sob as cerejeiras. Soa como haikai de Basho: Certos cervos nas cerejeiras/ sentam-se serenos sob as sakuras. Parece imagem de Kurosawa, o maior dos cineastas japas, ou uma pincelada de Hokusai, o cara que pintou A Grande Onda (a pintura mais reproduzida do mundo) e retratou também as cerejeiras em flor.
Sakura, você sabe, é a flor da cerejeira: a perfeição em pétalas, botão desabrochando feito bênção celestial; encanto e formosura num só broto. Tudo é breve, tudo é efêmero, tudo passa – e as sakuras caem num balé em câmera lenta, a suspirar: “Cedo demais, demais”. Por isso, e ainda mais, a época em que as cerejeiras explodem é a mais aguardada no Japão – a cereja do bolo, por assim dizer. O festival do desabrochar das cerejeiras remonta ao período Nara (710-794) e celebra o conceito budista do mono no aware: um cântico ao efêmero e à impermanência.
Ao que tudo indica, os cervos concordam. Ou mesmo que não, acabam de emitir sinais claros de que também querem curtir as cerejeiras em flor. A questão é que os homens (e mulheres) sapiens viviam crowdando o pico, e os cervos, recatados por natureza – e sempre desconfiados dos humanos –, simplesmente não podiam dar as caras para se banhar na chuva de pétalas. Quando o coronavírus manteve os humanos em confinamento, os cervos saíram em busca do tempo perdido, refestelando-se à sombra das cerejeiras em flor.
Tal e qual as baleias num balé marinho em Marselha, os elegantes elefantes em passeio por Mumbai, os golfinhos no Golfo do Bósforo, as águas-vivas dando vivas aos canais agora límpidos de Veneza, as tartarugas transformando a pútrida praia do Flamengo em Noronha, símios brincando de Planeta dos Macacos em templos da Tailândia, pavões a desfilar por Madri e Nova Délhi, uns chacais chocando Tel Aviv, cabritos monteses baixando às planuras do País de Gales, búfalos bufando pelos bulevares da Índia.
O mundo sem bípedes.
Talvez inspirado nisso, alguém postou um meme divertido: botos saltando nas águas translúcidas do Arroio Dilúvio, ou, vá lá, Riacho Ipiranga. Achei legal. Mas como o nome original do pestilento córrego que deságua no Guaíba era Jacareí, ou “rio dos jacarés”, prefiro torcer pela volta deles. Fico até pensando se não seria o caso de dizer “ainda bem que a natureza criou o coronavírus”, como falou um ex-presidente insepulto. Mas sei lá. Ando meio desiludido com esse vírus aí. Todo mundo que eu queria que pegasse, testa negativo.