O passado está sempre mudando. O passado é inconstante e movediço, é volúvel e volátil. Isso porque o mesmo se passa com o presente: a impermanência dita as regras que regem a humanidade, e não é preciso ser budista para sabê-lo.
Assim, por mais surpreendente que tal obviedade possa soar nos ouvidos menos familiarizados com o tema, é evidente que o passado sempre foi, é e será reinterpretado (e reescrito) pelo presente. Justamente por isso, a História – com pomposo H maiúsculo – é pouco mais do que uma fabricação. Claro que a história se baseia em fatos reais e em documentos fidedignos. A questão é que tais fatos e tais documentos devem necessariamente ser interpretados por alguém. E essas interpretações variam conforme quem as faz e, é claro, quando as faz.
Mas certos fatos são imutáveis e, por mais que se tente “reinterpretá-los” de acordo com as flutuações (ou conveniências) do presente, eles não se modificam. Por exemplo: quando uma guarnição militar deixa a caserna de madrugada e derruba um regime constitucional, esse fato tem um só nome: “golpe militar”. Pode ser um golpe brando ou um golpe baixo; pode ser uma espécie de golpe do baú ou até um tipo de golpe de vista. Pode-se chamá-lo de Proclamação da República ou de Revolução de 30. E esses “movimentos de tropas” podem ser apoiados por parcelas da sociedade civil, ou podem ter sufocado os anseios dela em sangue e pólvora. Nada disso transmuta a essência nem modifica o cerne de sua natureza: quando soldados armados derrubam um governo legalmente instalado no poder, estão deflagrando um golpe militar.
O primeiro golpe militar da história do Brasil deu-se no alvorecer de 15 de novembro de 1889. Foi um tanto brancaleônico, confuso, turbulento e desconexo – como certos governos que andam por aí. O fato é que acabou deixando inscrito na história política do país a visão de que um grupo de militares “esclarecidos” pode arvorar-se a salvar a nação em seu nome, e em nome daqueles que o apoiam.
Por motivos nem tão diferentes daqueles que levaram os golpistas de 1889 a derrubar a monarquia, os golpistas de 1964 também tiveram o apoio de segmentos da sociedade civil. Mas o fato é que os “revolucionários” de 1889 convocaram eleições que, embora indiretas, alçaram Deodoro da Fonseca à presidência “apenas” 14 meses após o golpe. E o chamado “decreto rolha”, assinado um mês após a queda do imperador para censurar a imprensa e cercear a liberdade de pensamento, durou “só” quatro anos.
Chegamos assim ao ponto que interessa: se você é um desses que anda por aí dizendo que em 31 de março de 1964 não houve golpe militar no Brasil, que não vivemos 20 anos sob regime ditatorial, que não existiu tortura e nem censura, então faça de conta que continuamos naqueles bons tempos e que não adianta dar opinião: opiniões estão proibidas. Portanto, engula a sua já. Você não vai me derrubar: o mestre aqui sou eu.