Suponho que a afirmação possa reverberar certa estranheza. Ocorre, porém, que a revelação me foi feita (quase que) de viva voz por uma parente distante (no tempo) mas próxima no caule, no cerne e nas células de nossa, digamos assim, árvore genealógica. Ou talvez eu tenha confundido as coisas e as revelações que tive ao encostar meu coração naquele tronco hirsuto e de casca rugosa fossem só memórias ancestrais da soberba araucária, e não uma existência anterior minha. Seja como for, vivenciei, por minutos que ressoaram como séculos, todas as vicissitudes da nobre espécie vegetal à qual, desde então, julgo de alguma forma pertencer.
Deu-se assim o dito causo: deambulava eu pelas velhas ruas de terra e pedras soltas de Canela, na serra gaúcha, lá pelos idos dos anos 1970, dirigindo-me, como de hábito, às solenes e assombrosas ruínas do cassino de Dietrich (que seguem lá, em abandono, embora o Canela Instituto de Fotografia e Artes Visuais, que já presidi, tenha apresentado lindo projeto para revitalizar o local), quando escutei o chamado selvagem. Sem pestanejar, cruzei uns tufos de macegas e marcelas e abracei-me ao velho pinheiro. E então, feito aqueles efeitos especiais de filmes como Highlander, em meio a um turbilhão de flashes e fulgores, distorções e redemoinhos, vivenciei os estilhaços de memória e as múltiplas facetas de uma lenhosa linhagem.
Do coração rochoso de Gondwana, há 180 milhões de anos, aos contrafortes ventosos dos Andes, com seus meros 6 milhões de anos, vi tudo do alto das copas em forma de umbrela; os galhos estendendo-se horizontalmente para se alçarem aos céus feito candelabros espinhosos, dos quais pendem grimpas adornadas por anéis de pinhas e folhas lanceoladas. Um exército de troncos colunares, conduzido pelos ventos e pelos pássaros para recobrir planaltos e serras, até as encostas da Mantiqueira, nas Gerais. E o grasnar das gralhas azuis, o grunhido das manadas de porcos selvagens, a chegada de gangues de caingangues, os pinhões sapecados em fogueiras de suas casas subterrâneas; o advento dos caras-pálidas com sua usura e seus machados e serrarias, suas serras e motosserras; o fogo, as brasas, as brumas. O voo solitário da última gralha sobre um campo de cinzas. Soltei o tronco.
Dali em diante, decidi plantar araucárias, estudar as araucárias, escrever sobre as araucárias e amar as araucárias. Também passei a associar pessoas com árvores e creio que já convivi com jequitibás, jacarandás, nobres cedros, magníficos mognos, castanheiras e, claro, altivos paus-brasil. Mas o que mais vejo é a proliferação dos pinus-idiottiis. E, como bem disse, em 1890, o genial naturalista John Muir: "Qualquer idiota pode derrubar uma árvore".
A propósito: o prefeito de Porto Alegre sancionou a Lei Complementar 757, conforme a qual qualquer um pode "podar" árvores "perigosas". Celebração no pomar dos pinus.