Entre os dias 10 de junho e 22 de setembro de 1692, 19 pessoas foram enforcadas em Salem, Massachusetts, na costa leste dos Estados Unidos, enquanto outra foi esmagada por rochas deitadas uma a uma sobre seu peito. Embora seis dos executados fossem homens, as vítimas ficaram conhecidas como "as bruxas de Salem". A gritante maioria subiu ao cadafalso jurando inocência – o que, evidentemente, era o caso. O trágico e famigerado episódio iria mudar para sempre a história do Judiciário nos Estados Unidos, já que, após a independência, em 1776, serviu de exemplo para refrear o autoritarismo das cortes e reduzir eventuais arbitrariedades dos magistrados. Por isso, até hoje, os americanos podem eleger – e destituir – muitos de seus juízes.
Na semana passada, estive em Salem, cidadezinha perturbadoramente perfeita, feito uma simulação de computador, a meia hora de Boston. Twin Peaks, por assim dizer. Uma de minhas filhas está ensaiando a peça The Crucible (As Bruxas de Salem, em português), que o dramaturgo Arthur Miller escreveu em 1953, usando a chamada "histeria de Salem" como metáfora e vigorosa denúncia contra a caça às bruxas que assolava a América em tempos de macarthismo. Concluímos que visitar o palco dos acontecimentos não seria mau laboratório.
Estacionamos ao lado da chamada Witch House – não que uma bruxa tenha morado ali, pois que nunca houve bruxas em Salem –, mas porque é a única casa de 1692 ainda em pé. Mal demos 10 passos, deparamos com uma manifestação diante do tribunal local – erguido, aliás, a poucos metros de onde ficava a corte original. Um bando de americanos gordos, brancos e típicos segurava cartazes exigindo o impeachment de um juiz. Só que logo descobrimos que ele não estava sendo acusado por ter prendido alguém, muito menos uma bruxa, mas por ter... soltado um sujeito que vendera heroína para uma menina que morreu de overdose. Caso similar ao de um juiz da Califórnia, destituído ontem mesmo por ter condenado um estuprador a apenas seis meses de prisão.
Após percorrermos o lugar onde ocorreram os principais casos da "histeria de Salem" e visitarmos os cemitérios onde vítimas e algozes jazem a sete palmos, nossas deambulações nos conduziram ao porto. Um mar metálico dissimuladamente plácido refletia os raios de um sol pálido e, ali, pregado na pedra do porto, contemplei o cinzento oceano, que trouxe a pólvora, o ferro e os vírus para a terra dos há muito extintos índios massachusetts. Então, lembrei do Brasil e, sei lá por que, me vieram à mente os versos de um poema de pé-quebrado que jamais escreverei:
"Oh, vil mar, mentes...".
Em 1777, ao fundar o curso de Direto da Universidade de Yale, próxima a Salem, o professor e teólogo Ezra Stiles disse: "É impossível escravizar uma República de cidadãos bem instruídos em suas leis, direitos e liberdades". Cidadãos que destituem juízes que caçam bruxas – e também os que soltam criminosos.