Thoreau me expulsou da cama dele.
Sim, ele mesmo: Henry David Thoreau (1817-1862), o filósofo da Desobediência Civil, o caminhante solitário, um dos pais do anarquismo, o rebelde pacifista que viveu por quatro anos isolado numa cabana minúscula, feita com as próprias mãos, às margens do Lago Walden, em Concord, nos EUA.
E foi justo lá que se deu a dita expulsão: às margens do Walden, o lago de degelo, plácido e profundo feito um olho celeste luzindo em meio à mata.
No início da década de 1980, disposto a escrever um ensaio biográfico sobre o nobre eremita, juntei uns trocados e, saco de dormir às costas, me mandei para Concord, com uma ideia (tola) na cabeça. O Lago Walden é uma reserva estadual, claro. Só não me ocorreu que fosse protegido por uma cerca de tela e que o portão fecha às 18h. Julguei que Thoreau não iria se importar se eu burlasse a lei – pelo contrário. Assim, noite alta, caminhei pela linha férrea cujos trilhos rebrilhavam ao luar e, do lado mais remoto do lago, pulei a cerca. Marchei reverente por entre carvalhos e bétulas, os pés afundando num tapete de folhas, sob os ruídos sutis e os aromas pungentes de uma noite de outono.
Era uma jornada de peregrinação – e Meca estava ao alcance.
Então, de repente, tudo mudou: à medida que me aproximava do local onde Thoreau erguera sua cabana (marcado no solo, como um sítio arqueológico), planejando colocar meu sleeping bag no exato lugar onde ficava a cama dele, senti uma presença – forte, intensa, avassaladora. Em seguida, tomei um pé na bunda, metafórico mas quase... palpável. "Aqui, não, mané." Enfiei o saco de dormir entre as pernas e fui procurar meu próprio canto às margens do Walden. Achei-o entre os olmos, onde dormi um sono meditativo.
Eu não ia escrever sobre nada disso. Ia escrever sobre uma de minhas vidas passadas, quando fui escriba no Egito, a serviço da faraó Hatshepsut, que ocupou o trono de 1473 a 1458 antes de Cristo, e que sempre me fez crer que o mundo deve ser entregue às mulheres (apesar das Thatchers e Rousseffs que vi governar nesta vida). Também ia escrever sobre amenidades e sobre as redes sociais. Mas então lembrei que Thoreau morreu num dia 6 de maio (de 1862) e que hoje é 4.
Lembrei também de frases dele: "Para cada mil pessoas dedicadas a cortar as folhas do mal, há apenas uma atacando as raízes". Ou: "A massa nunca se eleva ao padrão do seu melhor integrante; pelo contrário, degrada-se ao nível do pior". Ou: "Se um homem marcha com um passo diferente do de seus companheiros, é porque ouve outro tambor". Lembrei ainda que, certa vez, ele disse: "Opinião pública? Não conheço essa senhora". Então, desisti de escrever sobre o que eu iria escrever. E decidi me desculpar e agradecer de novo:
"Desculpe, Thoreau. Sou um tolo. Mas, graças a você e a outros da sua estirpe, continuo achando que os livros podem melhorar este pobre mundo". É só saber ler.