Ele se chamava Francisco Pereira Coutinho, mas era conhecido como "Rusticão". Ganhou o apelido em suas andanças pela Índia, pois tinha "certa rudeza no trato dos negócios". Apesar das muitas lambanças perpetradas no Oriente, o Rusticão acabou agraciado pelo rei: em 1533, tornou-se donatário da Bahia (o primeiro de uma linhagem, ao que parece). Instalado onde hoje fica o Farol da Barra, em Salvador, o Rusticão fez tudo errado: desprezou a ajuda de Caramuru (o náufrago que ali vivia desde 1508), atacou os indígenas e foi "mole para resistir às doidices dos doidos e mal-ensinados" que ele mesmo trouxera para o Brasil. Acabou morto e comido pelos tupinambás da ilha de Itaparica, em 1546.
Mas, antes de vir para o Brasil, o Rusticão já tinha virado nota de pé de página na crônica lusitana. Em 1515, ele levara para Portugal aquele que é tido como o primeiro rinoceronte a chegar à Europa. O bizarro animal – cujo nariz (rinos) ostentava um chifre (ceros) –, sequer era conhecido pela palavra grega que hoje o designa, mas, sim, chamado de "ganda", do malaio "gada". O bicho fora presente de Muzafar, rei de Cambaia, para o rei Dom Manoel.
Dom Manoel já possuía cinco elefantes (ou "alifões"), além de crocodilos, hipopótamos e avestruzes, sem falar nas araras e macacos levados do Brasil. Num domingo, 3 de junho de 1515, o rei decidiu promover, na praça central de Lisboa, um combate público entre a "ganda" e um de seus "alifões". O elefante fugiu antes do fim do primeiro round. Então, D. Manoel decidiu dar o chifrudo animal de presente para o papa Leão X. Mas a nau que partiu para Roma naufragou – e o rinoceronte foi ao fundo junto com ela. Não sem antes ser eternizado por Albert Dührer: o genial pintor alemão fez magnífico retrato do rinoceronte pioneiro. Toda essa história está registrada no livreto Deambulações da Ganda de Muzafar, Rei de Cambaia, publicado em 1517.
Na semana passada, os jornais noticiaram – e não era fake news – que o último rinoceronte-branco-do-norte morreu no Quênia, deixando vivas apenas duas fêmeas. Ou seja, a extinção da espécie é questão de tempo – pouco tempo. E extinção, como se sabe, é para sempre. Fiquei pensando como seriam as coisas se, em vez de um derradeiro macho rinoceronte-branco-do-norte, restasse na face da Terra um só exemplar masculino do Homo sapiens (além de duas "mulheres sapiens", claro). Mesmo que esse suposto sobrevivente não fosse um modelo lindo e brilhante como Dührer, mas um boçal como Rusticão, a eventual extinção dos humanos representaria uma tragédia maior, igual ou menor do que o sinistro sumiço do rinoceronte-branco-do-norte?
Não sei dizer. Mas parece que, nos confins da Malásia, há uma tribo que acredita que deus fez o rinoceronte à sua imagem e semelhança. E que a raça responsável por sua extinção será condenada a viver para sempre. Em um mundo horrível, cheio de gente brigando pelo Facebook.