E então, é Natal – também nos Emirados Árabes. Há árvores repletas de enfeites e luzinhas brotando do mármore, grandes o bastante para fazer sombra às equivalentes plantadas em shoppings classe A do Rio ou São Paulo. Há um “mercado natalino suíço” com chalés alpinos, vendendo artesanato da época, à espera de uma nevasca impossível – e ela caiu, na forma do matelacê que agora recobre o telhado inclinado, sob o céu que nos protege; the sheltering sky... Há uma Mamãe Noel circulando de minissaia no país onde as mulheres se cobrem de negras burcas. E há um Papai Noel solitário badalando sua sineta, estático sob o sol que arde, envolto pela poeira em um mais um canteiro de obras onde outro naco de deserto está prestes a se transformar em um novo prédio de vidro e aço.
Um Papai Noel no deserto. A incongruência parece em sintonia com as transmutações e os paradoxos que abundam em Abu Dhabi, o primeiro e mais abastado dos Emirados Árabes Unidos. Como seus seis irmãos, dentre os quais o mais conhecido é o vizinho e rival Dubai, Abu Dhabi surgiu do nada, feito miragem.
Foi como se uma calda de asfalto e concreto tivesse sido despejada sobre as dunas escaldantes – e os confeitos que agora as polvilham, qual MMs, são prédios com uma arquitetura tão arrojada quanto extravagante, em escala desproporcional.
Abu Dhabi é um outlet do luxo ocidental – e de um bocado de seu lixo estético e cultural também. Um vasto e reluzente free shop a céu aberto, à beira-mar – e o Mar Arábico, ainda por cima, embora ele agora seja só a moldura. Nessa versão árabe de Las Vegas, espécie de cassino no deserto, se joga um jogo de cartas marcadas e dados viciados: o jogo do petróleo, no qual o ouro negro sai sempre vencedor, no matter what.
Mas, nos Emirados Árabes, a roleta ainda gira e ninguém pode ter certeza se vai dar par ou ímpar. Afinal, a sorte desses reinos da fantasia parece estar cada vez mais dividida entre sua aposta no poder (aparentemente) ilimitado do dinheiro e da tecnologia, aliado à ousadia e à inventividade humanas, bem como à capacidade, bastante concreta aliás, de quem conseguiu erguer essa explosão de shoppings e malls e mármores e fontes e espelhos e carpetes e arcos e arabescos – esse oásis num areal irrigado e com árvores (inclusive de Natal) – ao passo que, em chave oposta, como se girando em direção reversa, está uma audácia despudorada, em flerte explícito com a arrogância, associada à insustentabilidade de um modelo de consumo sem freios, cuja base são os lucros obtidos com a exploração de um recurso natural não-renovável – e não por acaso o mais polêmico deles, o sangue negro do petróleo.
Nos Emirados, não há nada de velho sob o sol. As rodas rodam, os motores roncam – e os carros não pagam imposto. A gasolina vai de gorjeta, numa Disneylandia motorizada, erguida entre os canyons dos arranha-céus. Aqui, os filipinos labutam, os indianos servem e os paquistaneses dirigem (os táxis), enquanto os árabes contemplam e auferem e os europeus e norte-americanos se contentam com o relax e com os Rolex.
Mas, em meio a esses pescadores de ilusões, que fim levaram os pescadores de pérolas que, com seus esguios dhows (a admirável canoa árabe), deram origem a esse milenar assentamento humano desde os tempos em que ele era um vilarejo neolítico, em meio ao emaranhado dos mangues? E onde estão os mangues que ressecaram por volta do primeiro século antes de Cristo, cedendo lugar à areia, cujas línguas foram beijar o mar após uma brusca mudança climática que os cientistas ainda buscam entender? Onde estão as gazelas, que percorriam as dunas em tão vastos bandos, em especial aquela que, conforme o cultuado mito fundador, conduziu seus perseguidores ao oásis de Al Ain, no coração do deserto, dando origem não só a essa nação, mas a batizando: Abu Dhabi, “a possessão da gazela”?
Onde estão as inigualáveis e reputadas pérolas que colocaram Abu Dhabi no mapa do comércio e da ganância muito antes do viscoso óleo, pois que sequer restam aquelas, de valor muito inferior, que começaram a ser cultivadas – e não mais pescadas – a partir da década de 1930, tornando “obsoletos” os lendários mergulhadores de peito aberto e fôlego prodigioso?
Onde estão as choupanas barrasti, de palma de tamareira, ungidas a barro, frescas de dia e cálidas à noite, erguidas em meio às árvores ghaf, cujas raízes outrora fixavam a água no oásis, quando não era preciso viver num pesadelo refrigerado – the airconditioned nighmare? Não estão nem aí, à sombra das torres gêmeas, trigêmeas, siamesas ou petulantemente solitárias, nas avenidas ladeadas por espécies exóticas que brotaram de sementes transgênicas e sobrevivem irrigadas por uma rede quilométrica de canos plásticos. Por onde andam os beduínos, suas tâmaras, seus camelos, seus falcões? Bem esses ainda andam por aqui – só que muitos em corridas e spetáculos com ares de macumba para turista.
Desde que o petróleo foi descoberto em 1953, na desolada ilha de Das, em frente a Abu Dhabi, e mais especialmente depois que o onipresente sheik Zayed bin Sultan Al Nahyan ( morto em 2004) unificou os sete emirados em 1971, o passado dessa região parece estar blowin in the wind. Algum dia, pode se transformar em tempestade no deserto.
Mas, pelo menos nessa semana, nada disso importa, pois o jogo que agora interessa não é essa roleta russa de tambores cheios. A bala da vez é a bola que rola na grama. E já que Abu Dhabi precisa recuperar o seu passado antes que vire futuro do pretérito, talvez seja uma boa ocasião e um bom lugar para resgatar, entre tantas outras coisas, a cor original do Papai Noel - aquela que ele trajava com orgulho antes que um refrigerante escuro como petróleo viesse deixa-lo vermelho de vergonha.
Sim porque se, daqui há menos de uma semana, um Papai Azul for visto no deserto, sob os flocos de areia, com seu trenó puxado por camelos, dispensando as renas e assustando as gazelas, em plena Noite Feliz, então, os Emirados Árabes saberão que não precisam mais arcar com as consequências de sua imprevidência: o Grêmio já terá se encarregado de acabar com o planeta!
Mas não conte isso para eles, nem para mexicanos ou espanhóis, gregos ou baianos, muito menos para rubros, vermelhos ou encarnados. Presente de Natal tem muito mais graça se for surpresa.