O baterista dos Titãs, Charles Gavin, aqueceu o futebol do Interior gaúcho na passagem da banda por Porto Alegre. Nos dois shows da turnê "Encontro Pra Dizer Adeus", terça (12) e quarta-feira (13), vestiu camisetas do Aimoré e do Juventude dadas por torcedores. Ele sabe que não daria para ir de Inter ou Grêmio, mesmo se usasse ambas em momentos distintos do espetáculo. Aí o debate ia ser por que usou primeiro uma e depois a outra. Melhor não.
Paulista e corintiano, Charles é um amante do futebol. Sabe muito bem como funcionam as rivalidades locais. É um gentleman incapaz de uma indelicadeza. Estivesse eu no lugar do marketing do Juventude, entraria no ritmo das baquetas de Charles Gavin até o limite do exagero.
Na véspera, ele vestiu as cores do Aimoré, que criou e preparou Mengálvio até ele alinhar os astros no infinito com Dorval, Coutinho, Pelé e Pepe no Santos. Quando é que uma força do Interior, quase sempre soterrada pela avalanche inevitável dos clubes de massa, ganhará de mão beijada uma divulgação nacional assim? O gesto em si é simpático também para colorados e gremistas, nesta nossa terra grenalizada para além dos limites compreensíveis.
Expandindo o olhar, é um aceno contra a intolerância. É como se o xará do Miller, aquele que trouxe da Inglaterra a primeira bola, no crepúsculo do século XIX, acenasse: "Relaxem, gosto mesmo é do futebol". Nos conhecemos no Redação SporTV. Entre troca de figurinhas sobre futebol, informações e temas do programa, ficamos amigos virtuais, mas nunca havíamos trocado um abraço, que veio, então, no show das camisetas do Aimoré e do Juventude.
Baita show, a propósito. A vida inteira numa noite. Para um sujeito de 55 anos, como eu, a primeira vez com o filho de 18 berrando refrões juntos. Se o acaso não me protegesse durante minhas distrações talvez nem estivesse aqui. O Pedro sabe disso. Então, quando o Sérgio Britto mandou essa do palco, a gente se olhou, sorriu e calibrou a voz com os copos de chope na mão. A Simone riu e pôs as mãos na cabeça ali ao lado, vendo a cena de pai e filho. Família, como lembraria Nando Reis logo depois. Não sei se haverá outra chance com tal conexão, Pedro e eu. Graças ao Charles e aos Titãs, a minha está ali pregada na parede da lembrança, enquanto a memória não nos trair.
Só nesta turnê de despedida com a formação original, a Sofia, filha do Charles, que rala com ele Brasil afora, disse que em todo o lugar alguém vai lá e dá uma camiseta de futebol. Não bastassem as percepções sempre por outro viés que o marcam no programa, claro que as redes sociais vão dando a ideia para a parada seguinte da Caravana Rolidei. Já são mais de 40. Nesse ritmo, que se cuide o Papa Francisco, de longe o homem com mais camisetas de futebol do planeta, porque em todas as audiências o senhor Jorge Bergoglio ganha uma nova.
Quando o então cardeal de Buenos Aires foi eleito Papa, entrevistei os donos de bancas de jornal da Plaza de Mayo. Um deles, contou-me que "o Jorge sempre deixa a Cúria, atravessa a praça e vem reclamar de um pênalti não marcado contra o San Lorenzo enquanto toma café com medialuna com a gente".
Para além dos Titãs e do Papa Francisco, o futebol é muito musical. E a trilha predileta tem guitarra, baixo e bateria. É uma relação que cada vez mais se acentua. Há mil exemplos. Vou esquecer de muitos. Perdoem-me. Rita Lee com a camisa do Corinthians dançando com Sócrates, Casagrande e Wladimir. Ela, de novo, em Porto Alegre, vestindo Inter. Virou até cônsul cultura colorada. Gilberto Gil, gremista assumido desde que o Bahia não esteja envolvido.
A torcida do Liverpool canta You'll Never Walk Alone em Anfield na vitória e na derrota, sem que uma alma sequer erre a letra ou se perca no ritmo, mesmo sem um bom baterista para guiá-los. Elton John já foi até dono do Watford. O Oasis virou trilha sonora oficial do City de tanto que Liam e Noel Gallagher vestem azul.
O Inter mesmo tem até uma banda oficial, a Ataque Colorado, ex-Maria do Relento. Os Replicantes sempre serão associados ao Grêmio. As versões dos Mamonas estão por todos os estádios do Brasil.
Paro por aqui para não cair na armadilha da qual o Charles escapou ao vestir Aimoré e Juventude, sem se meter na nossa confusão Gre-Nal: não lembrou de fulano, colorado! Não citou beltrano, gremista! Por que não este ou aquele antes? Melhor parar por aqui. Mas que o Juventude tem de mergulhar na Série A no ritmo do seu titã fardado de Papo, ah, isso tem. Por que a sobrevivência do futebol no Interior do Brasil é mesmo titânica.