No dia 19 de fevereiro, um jogo agitou o norte da Itália. A Atalanta, de Bergamo, enfrentou o Valencia, pela charmosa Liga dos Campeões. Milhares de italianos e espanhóis foram até a cidade de Milão, onde os italianos venceram por 4 a 1. Uma festa, especialmente pela excepcionalidade da Atalanta na competição. O vírus já estava na Europa, mas nem todos os políticos deram importância. Muitos ainda diziam que era algo entre a invencionice e o exagero chinês, então não havia motivo para se preocupar.
O que se viu logo após a partida foi uma explosão nunca vista de doentes pela região, com direito a hospitais lotados e corpos trasladados para valas coletivas sem que seus familiares pudessem se despedir. A marcha fúnebre de caminhões do exército levando mortos de covid-19 será, com certeza, a imagem icônica da pandemia. Parecia tirada de filme de ficção científica, mas era tudo verdade.
Pois o prefeito de Bergamo, Giorgio Gori, definiu aquele jogo como "bomba biológica". Disse o prefeito: "Naquele momento, não sabíamos o que estava acontecendo. O primeiro paciente na Itália apareceu em 23 de fevereiro". A partida foi no dia 19". Quarenta mil pessoas no Estádio San Ciro, sem contar milhares vidas de outros países que foram a Milão, um centro turístico mundial, só para curtir o ambiente de Champions League.
Pesquisas realizadas por universidades italianas comprovaram, meses depois, que a aglomeração funcionou como poderoso transmissor do vírus, sem que o sistema de saúde estivesse capacitado para uma infecção em massa. O resto da história você já sabe. Descontrole, pânico, vidas perdidas e danos à economia maiores do que se um tempo correto de isolamento fosse respeitado.
Pois o Brasil, ainda perto de mil mortes por dia, cogita reabrir portões durante a pandemia, sob o argumento ridículo de que 30% da capacidade dos estádios oferece segurança. No Maracanã, talvez, umas 30 mil pessoas. Não é muito menos do que o público de Atalanta e Valencia. E como será o deslocamento dessas multidões, pelas ruas do Brasil? E a espera pelo próximo vagão do metrô, de ônibus ou trem suburbano? O futebol voltou a partir de determinadas condições bem específicas. Eu mesmo só fui a favor, passado longo isolamento, por entender que trata-se de uma atividade, diferentemente de outras, capaz de reduzir a quase zero o risco de mortes e transmissão. Os envolvidos têm natureza atlética e forte sistema imunológico. A farta testagem isola os positivos, impedindo-os de transmitir. Mas havia uma premissa básica: sem público, sem aglomeração.
Até a vacina chegar, não aglomerar é o mais eficaz remédio contra o vírus, já que as pessoas precisam retomar a sua vida para garantir o sustento. Não há dúvida quanto a isso: evite aglomerações. E o que são milhares de pessoas em um estádio, fora o ajuntamento decorrente nas cercanias, senão o ápice da aglomeração? Ainda mais com clássicos a toda rodada. A classe artística também sofre sem shows, mas respeita o momento. Futebol sem torcida é uma chatice, porém público agora seria um desprezo com a saúde pública e seus profissionais. Um escárnio. Para quem esperou até agora, uns meses a mais não fará diferença. As bilheterias não são a maior fonte de renda dos clubes há muito tempo. Ninguém vai quebrar por isso. A vacina está perto. A chinesa, inclusive, será aplicada nos paulistas em outubro. Os clubes têm de lutar pelo nivelamento técnico do campeonato com os portões fechados, e não abertos.
E tem o Flamengo, claro. O Flamengo foi o que mais insistiu para o futebol voltar. E o fez antes do aceitável, com gente morrendo em hospital de campanha ao lado do Maracanã. Retomou treinos sem permissão. Agora, com 30 infectados, pede arrego. Quer adiar o jogo com o Palmeiras. Sou a favor, mesmo que o Flamengo não mereça. Mesmo que defenda a volta da torcida apesar de viver um surto interno. Revanchismo não leva a nada. É tal o descontrole no Flamengo que ninguém sabe mais quem é positivo ou negativo. O risco para a saúde pública seria enorme. O futebol dá péssimo exemplo quando cogita reabrir portões. A FERJ dá péssimo exemplo ao tentar a liberação só no Rio, mancomunada com Flamengo e o mais corrupto Poder Público do país. O Palmeiras dá péssimo exemplo ao não aceitar o adiamento contra o Flamengo. É a sublimação do jeitinho, da vantagem a qualquer custo, da subversão de regras recém criadas.
A volta do público aos estádios, no caso da pandemia brasileira, é o alerta do prefeito de Bergamo: equivale a acionar uma bomba biológica de efeitos imprevisíveis. Jogadores testados e público não-testado no mesmo ambiente. Qual a lógica? Depois não adianta chorar, embora eu tenha dúvidas se o país do vale-tudo esteja realmente preocupado com as lágrimas alheias.