Se você é colorado ou gremista, saiba que nunca mais verá seu time decidir uma Libertadores em casa, no orgulho do seu estádio. A menos que tenha a sorte de ser campeão justamente no ano em que Arena ou Beira-Rio sejam contemplados como palco da final, nas salas obscuras e suspeitas da Conmebol. Mais fácil ganhar na Mega-Sena. É o cenário desenhado a partir deste ano, quando a entidade decretou jogo único para finalizar o campeonato, abandonando o clássico, culturalmente enraizado e mais justo sistema de ida e volta. A novidade começou a fracassar com um vício de origem.
Trata-se de uma resolução autoritária, própria dos regimes de exceção, sem ouvir ninguém, de cima para baixo. E, como é próprio das ditaduras, prejudicando os mais pobres. Estes não têm dinheiro para comprar passagem de avião ou mesmo de longas distâncias de ônibus. Somando o preço do ingresso padrão Arena e o hotel na cidade eleita, só vendendo a casa. O exemplo é a Liga dos Campeões. A cópia pura e simples é um equívoco com cara de imitação. Não somos a Europa escandinava, com distâncias curtas por trem e renda média 100 vezes maior. Vivemos em um continente injusto, pobre e desigual.
Questão técnica
Em casa, na sua cidade, apesar do ingresso caro, ainda existiria uma remota chance de o torcedor brasileiro ou sul-americano, organizando a renda familiar, ao menos tentar realizar o sonho de ver o seu time numa final de Libertadores. Agora, não mais. Virou um apartheid social.
A final em jogo único, dentro do nosso contexto social sul-americano, é banquete para os ricos. Nada diferente do que quase tudo feito na América Espanhola desde antes das guerras de Simon Bolívar e da sangria perpetrada pela coroa portuguesa, regada a escravidão e impostos escorchantes no Brasil. Os mais pobres que se danem. Se der para tirá-los da festa, melhor.
O estádio em Lima estará lotado, é claro. River e Flamengo têm milhões de torcedores. Haverá alguns milhares capazes de bancar o hotel cinco estrelas em que se transformou a final em jogo único. Mas é uma torcida um tanto playboy e patricinha.
Teremos saudade de imagens como o sangue gladiador de Hugo De León escorrendo pelo rosto em 1983, a taça sobre os ombros e aquele mar azul do Olímpico ao fundo, inesquecível para os gremistas. Ou da troca de energia do eterno Fernandão e suas lágrimas de emoção com os colorados no Beira-Rio, fundamentais em 2006.
O sistema de ida e volta na final da Libertadores era um sucesso. Esse é o ponto. As comunidades viviam intensamente as partidas durante dias, inclusive debatendo o primeiro confronto. Mesmo com derrota medonha na ida, havia a chance da virada épica, aquela para ficar na história.
Mesmo quem ficava fora do estádio, sem ingresso, fazia o seu churrasco e saía alegremente com a camisa do seu time pelas ruas. Era como se jogasse junto desde o amanhecer, tentando entrar no coração dos jogadores ao exibir o orgulho de mostrar a força do fator local. A atividade econômica fervilhava no comércio. Exércitos de torcedores visitantes se deslocavam para encarar a batalha no campo inimigo. Não havia razão para a Conmebol mexer na final em jogo único.
Enquanto isso, nada é feito nas questões que realmente interessam. Exigir melhores condições dos estádios? Nem pensar. Ao contrário. As fases classificatórias incharam o torneio, produzindo jogos ruins em potreiros sem segurança. Transparência nas decisões disciplinares? Que nada. Quanto mais multa, melhor – mesmo em casos de racismo e morte na arquibancada, como no absurdo contra Tinga (2014) e no caso da torcida do Corinthians na Bolívia, um ano antes. Só o dinheiro importa para Conmebol e sua ganância.
Isso sem falar na questão técnica. Um jogo só favorece o aleatório, o acaso. Reduz a chance de um campeão mais justo. A melhor campanha perde o direito de decidir em casa, conquistado na bola. Neste sábado, os rubro-negros não terão a chance de contar aos netos que viram o seu Flamengo campeão no velho e bom Maraca. Nem mesmo de curtir o dia da final no Rio, fazendo alentaço na chegada do ônibus com a delegação, certos de que o carinho significará aquela decisiva gota de suor a mais de cada jogador.
Haverá mais gente em Lima tirando selfie e postando do que cantando. A final raiz acabou. Gourmetizaram a Libertadores da América. Teremos uma decisão nutella.