Quando saiu a notícia da efetivação de Marcão como técnico do Fluminense, apenas o segundo técnico negro entre 20 clubes da Série A, lembrei imediatamente de quando fui a São Paulo gravar o Grande Círculo, programa de entrevistas do SporTV. O entrevistado era Tinga, transformado em ícone da luta pela igualdade racial após ser xingado de macaco por torcedores do Real Garcilaso, do Peru. Era a Libertadores de 2014, ele vestindo a camisa 7 do Cruzeiro. Sua resposta viralizou e nunca mais foi esquecida:
— Trocaria todos os títulos da minha carreira por um mundo com igualdade entre todas as raças e classes.
Penso que a repercussão mundial — no dia seguinte a Fifa já se solidarizava — se deu não apenas pela violência dos gritos e gestos toda vez que ele pegava na bola, mas muito pela espontaneidade. Tinga nos contou que nem imaginava que viriam falar com ele sobre racismo, de tão acostumado a ouvir ofensas no Brasil. A ideia de trocar tudo por igualdade calou fundo pela força da sinceridade.
Saiu sem pensar, de algum lugar da alma. Quem conhece a incrível trajetória de Tinga sabe o quanto custou a ele cada centímetro conquistado, da vida difícil na Restinga até ser capitão do Borussia Dortmund-ALE. Além do preconceito racial, Tinga é um sobrevivente do preconceito social talvez ainda pior, por ser pobre. O Brasil é uma pátria cheia de desigualdades.
Ignorância
O narrador Milton Leite, mediador e meia central do Grande Círculo, só para não perder o gancho, lá pelas tantas exibiu uma imagem emblemática no telão. Era uma foto de Jürgen Klopp, prancheta na mão, ouvindo-o atentamente acerca de questões táticas. Trocar tantas conquistas, que incluem glórias por Grêmio e Inter, seu clube do coração, pelo prêmio da igualdade seria um ato de grandeza e renúncia. Antes de Marcão, novo técnico do Fluminense, voltemos rapidamente aos atos racistas no Peru. Ali houve também o ingrediente da ignorância histórica, para além da imbecilidade humana.
Garcilaso de la Vega era um poeta e cronista mestiço, filho de um nobre espanhol com uma índia. Nasceu no Peru, em 1539, anos após Francisco Pizarro entrar em Cusco matando quem enxergasse pela frente. Estudou nas melhores escolas da Velho Continente, por influência do pai. Morreu aos 77 anos, na França.
Antes, tomou o partido da mãe e decidiu resgatar em texto a fantástica civilização inca, através de lembranças da infância. E, claro, de histórias que ouviu sobre o massacre. A obra foi censurada na Espanha e no Vice-Reinado do Peru. Também, pudera. O irônico nome do livro diz tudo: Comentarios Reales. Ao ofenderem Tinga, aqueles peruanos xingaram sua própria história.
Pois há algo pior do que as injúrias da arquibancada. Estas, ao menos, são audíveis e visíveis. Com esforço, vontade e engajamento, tripé raro de se formar, dá para criminalizá-las, como manda a lei. Mas e o racismo invisível e estrutural? Este é mais complexo.
É o que faz Marcão ser apenas o segundo técnico negro da Série A. O outro é Roger Machado, do Bahia. Desde que Márcio Chagas deixou o quadro de árbitros da FGF, não se viu mais um negro sequer apitando jogos no Gauchão. No Brasil, em mais de mil treinadores somando todas as divisões, estaduais e nacionais, são apenas quatro negros de apito na mão.
Não há presidentes de clube. Nem gestores, tirando o próprio Tinga, gerente do Cruzeiro até se recusar a trabalhar com a atual gestão. Quantos conselheiros negros existem em Grêmio e Inter, em quase 200 cadeiras? Claro que o futebol é reflexo da sociedade.
Quando surge um governador negro, como Alceu Collares, no Rio Grande do Sul, e Albuíno Azeredo, no Espírito Santo, nos anos 1990, eles viram notícia planetária. Tente lembrar de um grande executivo negro. Quantos repórteres, nas redações dos jornais? Gerentes de loja, médicos, juristas?
Se mais da metade da população se declara parda ou negra, mas nas escolas e universidades quase que só brancos e filhos de brancos têm assento, por exclusão econômica e social, o mecanismo termina por reforçar e alimentar o racismo e o discurso intolerante.
A vergonha é nacional, mas é pior no futebol
A esmagadora maioria dos nossos craques, de Leônidas a Neymar, passando por Friedenreich, Pelé, Romário, Ronaldo e Ronaldinho, são negros. Que se ocupem do circo, pelo talento inato, mas nada de trazê-los para a bilheteria. Vira um gueto, tipo apartheid mesmo. Triste, porque o futebol brasileiro, pela visibilidade que tem e a maneira como interfere na vida das pessoas, tem tudo para acelerar e ser bandeira no combate a este mecanismo perverso.
Daí a importância de Roger, Tinga e, agora, Marcão, cuja missão é livrar o Fluminense do rebaixamento. Eles encontraram as brechas deste sistema hermético e chegaram ao topo, contra todas as probabilidades. Vida a longa a eles, para estimular os que nem tentam escalar essa montanha, de tão alta e íngreme que é.