Nos Estados Unidos, a cada eleição presidencial, os norte-americanos são convidados a opinar sobre questões variadas, das mais complexas até as mais prosaicas. São as props. Não configuram plebiscitos exatamente, embora o mundo as trate dessa maneira. O certo é que centenas de props são votadas em dezenas de estados. Não temos essa cultura no Brasil. Nem das tais props, menos ainda do plebiscito. Tanto que a gente lembra das exceções. Em 1993, os brasileiros votaram para escolher entre forma e sistema de governo. Monarquia ou República? Parlamentarismo ou presidencialismo? Deu república presidencialista de relho, após embates brilhantes entre o presidencialista Leonel Brizola e o parlamentarista Paulo Brossard na TV.
Só o que se salvava na lunática campanha monarquista era um jingle ótimo, fácil de cantar e cujo refrão oferecia um verso surpreendentemente lúcido:
— À luz de uma ideia, mudar o país: justiça e paz dentro da lei.
O problema era a rima seguinte, que esculhambava tudo: "Vote no rei". Como adoro jingles — sou capaz de cantar o da campanha de Aureliano Chaves em 1989, para se ter ideia da maluquice — ignorei essa parte. Qual o poder transformador de uma ideia clara, defendida com a força das convicções?
No Brasil, a fórmula não tem funcionado. Arranjos políticos tisnam propostas que pareciam firmes e sinceras, à direita e à esquerda, sugando a energia para executá-las. O resultado é uma deformidade que se chama corrupção. Mas e um time de futebol?
Pensei nisso ao ver a vitória do miserável Fluminense sobre o nababesco Flamengo, pela semifinal da Taça Guanabara, o primeiro turno do Campeonato Carioca. Os jogadores do Fluminense são desconhecidos, ruins e baratos. Os do Flamengo são famosos, bons e caros. O Fluminense deve uma vela para cada santo. O Flamengo torra milhões de euros a cada novo reforço, ainda que seja incapaz de gastar uma ninharia para cumprir normas de segurança nos alojamentos das categorias de base. Sim, o incêndio que matou 10 meninos do Ninho do Urubu poderia ter sido evitado.
Voltemos ao Fla-Flu, que terminou com um banho coletivo tricolor e gol único nos acréscimos: posse de bola além dos 60%, um terço a mais de passes certos e vantagem no número de finalizações. Como assim, se a diferença de qualidade é do tamanho da roubalheira da quadrilha do Sérgio Cabral?
O Fluminense venceu o Fla-Flu pela clareza das ideias de seu técnico, Fernando Diniz, enquanto o Flamengo não sabia se casava ou comprava uma bicicleta. Diniz decidiu que o seu time buscaria aproximações e troca de passes sem dar balão. Parecia impossível. Um treinador tem de se adequar às características de seus jogadores. Diniz mandou esse ditado às favas. Deve ter feito lavagem cerebral em Airton, que agora joga futebol. A saída de bola é ordenada, com os dois zagueiros (Digão e Matheus Ferraz!), mais Airton entre eles, soltando os laterais ao mesmo tempo. Uma proposta ofensiva, que só pode ser executada se o técnico convencer seus jogadores de que sim, é possível.
Não estou dizendo que o Fluminense será o bicho-papão de 2019. Duvido até que seja campeão carioca. Em algum momento, a qualidade técnica medonha entrará em conflito com a construção coletiva. Milagres não existem. No Athletico-PR, Diniz recusou-se a adotar um plano B ou C quando os resultados ruins o levaram ao Z-4. Manteve-se fiel as suas crenças religiosamente. Que o demitissem, como de fato ocorreu. Ele terá de evoluir e incluir em sua trajetória noções maduras de pragmatismo, reconhecendo que nem sempre haverá como jogar do mesmo jeito, atacando e atacando e atacando com sofreguidão, por mais racionais e ensinados que sejam todos os movimentos.
Também não afirmo que Abel Braga é um ultrapassado porque perdeu o Fla-Flu. Calma. Ninguém é campeão mundial por acaso. No Inter de 2006, a vitória sobre o Barcelona foi um show de estratégia para marcar o meio-campo de Xavi, Iniesta e Ronaldinho. Há muita água para rolar em 2019. Também não se trata do falso debate de novatos estudiosos contra veteranos ultrapassados. Tiago Nunes, um guri de 38 anos, fez o Athletico campeão da Sul-Americana, mas André Jardine fracassou no São Paulo, assim como Jair Ventura no Corinthians, enquanto Renato, Mano e Felipão dão volta olímpica. Uma conversa que parece o cachorro tentando morder o rabo, andando em círculos.
O Cruzeiro de Mano exibe ênfase defensiva. Primeiro protege, depois solta. O Grêmio de Renato, mesmo que volta e meia surpreenda o adversário com coelhos da cartola conforme a circunstância, é o time da posse de bola em progressão e sem demora para verticalizar. Deve estar pensando em como aperfeiçoá-lo no curso da CBF. São modelos opostos, mas que nascem de ideias claras e treinadas. Felipão chegou ao Palmeiras e bolou exercícios diários para o time trocar menos passes e estimular as individualidades no ataque, em razão do perfil do grupo cheio de talentos.
Os vencedores de 2019 serão times com técnicos de ideias claras. Um treinador pode até não ter fôlego para seguir com elas, como ainda é o caso de Fernando Diniz. Mas jamais erguerá taça alguma sem iluminar o seu time com uma ideia firme e forte.
É a gênese dos campeões.