Uma manhã, eu e o Bernardo saíamos do prédio em que morávamos, em Boston, e vimos, na rua, ao lado de uma floreira, uma gorda ratazana. Levei um susto. Esses ratos grandes, bem fornidos e ousados são mais frequentes em Nova York. Em Boston, até então, eu só havia visto pequenos e simpáticos camundongos. O Mickey.
No nosso prédio, eu tinha certeza, não moravam ratos. Era um prédio muito limpo e organizado, cuidado pelo ótimo zelador Julio, que era salvadorenho. O Julio vivia há mais de 30 anos nos Estados Unidos, e a maior parte desse tempo ele trabalhou no prédio. Formou família, tinha mulher, filhos e tudo mais. Era um americano, já.
Pois decidi que ia avisar o Julio da presença daquela ratazana. Ele certamente saberia o que fazer a respeito. Então, deixei meu filho na escola, voltei e, quando estava chegando, vi o Julio zanzando pela portaria. Cumprimentei-o e saí falando do rato, contei como o bicho era taludo e bem alimentado. O Julio me olhou, pensativo.
— Ele estava na rua? Perguntou
— Sim! — respondi. — Bem aqui, na rua, em frente àquela floreira.
— Então não posso fazer nada. Ele tem a liberdade de ir para onde quiser.
Fiquei perplexo com aquela súbita defesa do Julio do direito de ir e vir das ratazanas, mas não protestei. Entendi que faz parte da cultura americana e que o Julio a havia introjetado depois de tanto tempo morando no país.
Contei essa história no Timeline, da Gaúcha, nessa sexta-feira, para exemplificar como os americanos prezam a liberdade individual. É algo muito forte para eles, muito presente em tudo que fazem. Só que, curiosamente, isso não criou uma sociedade egoísta. Ao contrário: o americano respeita a liberdade individual do outro porque quer que a sua seja respeitada. Ele não vai falar alto no trem ou no ônibus para não dar ao outro a justificativa para falar alto também. Então, a sociedade é solidária no controle à liberdade individual de cada um, inclusive a dos ratos.
O principal trunfo que eles têm para conseguir essa façanha é a Constituição. Jung dizia que existem arquétipos que formam o inconsciente coletivo. Isto é: algo que toda uma comunidade absorveu como verdade sólida. A Constituição americana é assim. Ela está na cabeça de cada americano e dos estrangeiros que lá se radicaram, como o Julio.
Esse fio condutor da vida americana, ao mesmo tempo que mantém a sociedade dentro de regras, dá maiores possibilidades de liberdade, porque você sabe o que pode fazer e o que não pode. E, se você está dentro da lei, você tremula isso como um salvo-conduto. O indivíduo enfrenta o país inteiro, se preciso. Ou seja: os regulamentos que enquadram a vida do cidadão também lhe dão mais liberdade.
É uma façanha dos Estados Unidos. Maior do que ir à lua. Será que algum dia faremos igual?