O Ano-Novo de 19 para 20 nós decidimos passar em Nova York, eu, a Marcinha e o Bernardo. Sabíamos que em poucos meses voltaríamos em definitivo para o Brasil, então queríamos nos despedir da Big Apple com alguma cerimônia.
Visitamos Nova York diversas vezes, nos seis anos em que moramos nos Estados Unidos. Eu brincava que, lá, Nova York era a minha Gramado. Era uma viagem fácil, sobretudo de trem, que é, de longe o meu meio de transporte favorito. Muitas vezes, íamos e voltávamos no mesmo fim de semana. Mas, naquele final de ano, resolvemos ficar no mínimo cinco dias.
Reservei um belo restaurante para a ceia de Réveillon, só que, no dia 31, a Marcinha descobriu o preço que pagaríamos, emitiu um assustador grito de horror econômico e não parou mais de reclamar. Era muito caro, poderíamos comer bem em um lugar muito mais barato e fazer outras coisas com o dinheiro e tudo mais.
Em nome da harmonia familiar, cedi. Cancelei a ceia cara, fiz uma reserva às pressas em uma cantina do Little Italy e para lá fomos. Foi um bom jantar e tal, mas faltava um pouco de animação. Por volta das 22h, já tínhamos terminado a sobremesa e estávamos bebericando uns drinques. Aí propus:
— Quem sabe nós vamos caminhando até o Piccola Cucina para ver como está a festa por lá? Quem sabe nos deixam entrar?
Há três Piccola Cucina nas imediações do SoHo, todos dos mesmos donos italianos. São restaurantes, mas também são bares. Em certo momento, o volume da música aumenta provocadoramente e todos se levantam e dançam, inclusive os funcionários e os proprietários. É um dos lugares de que mais gosto em Nova York. Havia tentado fazer reserva lá, mas os três estavam lotados. Quem sabe agora, no improviso, sem precisar jantar, desse sorte?
Assim, nos pusemos em marcha para o Piccola Cucina. As ruas do SoHo estavam vazias e, embora fizesse frio, não era uma temperatura insuportável. A massa ignara, centenas de milhares de almas, se espremia na Times Square, esperando para ver aquela bola descer. Se você é como eu e, mesmo em tempos não-pandêmicos, não gosta de aglomerações, evite de todas as maneiras ir à Times Square no dia 31. No começo da tarde já há farofeiros internacionais procurando um lugar estratégico para se instalar a fim de ver a bola. Eles ficam lá nove, dez, 12 horas, de pé, na rua, às vezes debaixo de chuva ou de neve só para ver a bola. O comércio fecha, a polícia impede o acesso a determinadas ruas, a maior atribulação por causa da maldita bola.
— Pelo menos nós estamos longe daquela bola — disse para a Marcinha e o Bernardo, enquanto ouvíamos nossos passos ecoando pelas ruas desertas do SoHo.
Enfim, chegamos ao Piccola Cucina. Um dos donos estava à porta, creio que fumando. Fui falar com ele. Expliquei que eu, minha mulher e meu filho queríamos passar a virada do ano ali e...
Ele nem me deixou terminar.
— Entrem! Entrem! — gritou, sorrindo e abrindo a porta.
O Piccola é mesmo pequeninho. Há um balcão e, diante dele, umas poucas mesas. Sentamos em torno de uma e o proprietário já nos serviu champanhe.
— Por conta da casa! — anunciou.
Havia um grupo de italianas bem ao nosso lado. Elas estavam de pé, dançavam e cantavam. Alguém nos deu uns óculos de 2020, nossos olhos ficavam atrás dos zeros luminosos. Outros pequenos grupos também estavam de óculos e dançando e cantando. Logo, nós dançávamos e cantávamos também. O dono do bar subia nas cadeiras e avisava que ia servir mais champanhe e lentilha e, depois, uns tiramisus para deixar a vida mais doce.
Quando o momento da virada do ano chegou, a música parou e alguém levantou o volume da TV, que transmitia, exatamente, a queda da bola na Times Square. Nos perfilamos diante do aparelho e começamos a fazer a contagem regressiva em inglês, italiano e português, tudo misturado:
— Ten! Dez! Dieci!... Nove! Nine!... Otto! Oito! Eight!
Ao chegarmos no zero, as rolhas dos champanhes estouraram, a bola desceu e todos nos abraçamos e nos beijamos. Em seguida, alguém começou a cantar “New York, New York”:
— Start spreading the news...
E todos cantamos em coro, todos, americanos, italianos, brasileiros e talvez gente de outras nacionalidades que se encontrou por ali. Foi emocionante, foi um tributo àquela grande cidade, àquele grande país, à raça humana e a um sentimento de felicidade que nos unia, mesmo que cada um viesse de um lugar diferente. Foi algo bom, que nos encheu o peito de alegria e otimismo e esperança no futuro.
Assim começou 2020. Nós nem fazíamos ideia do que viria a seguir.