Vinha rodando pela cidade quando vi que, em um carro vermelho que deslizava à minha frente, o motorista abriu a janela e jogou fora uma sacola plástica. Cara, aquilo me deu uma raiva. Olhei para a sacola, que agora jazia no leito da avenida, e decidi ver quem era aquele motorista de péssima educação. Dei um jeito de avançar, troquei de pista e emparelhei com o carro dele. Na verdade, ela: uma mulher de punho gordo. Nisso reparei. No rosto prestei pouca atenção, mas aquele punho, que estava logo atrás da mão que segurava o volante, era tão gordo que tinha dobras.
Não podia fazer nada para obrigar aquela mulher de punho gordo a parar o carro, descer e ir buscar a sacola plástica que ela atirou na rua, mas, com toda a minha força e a minha fé, roguei-lhe uma maldição:
– Que o lixo com o qual você emporcalhou a cidade volte para você, mulher de punho gordo! Que, de alguma forma, você reencontre essa sacola plástica, talvez lhe entupindo a calha da casa, talvez obstruindo um cano, o que causará inundação em seu banheiro imundo! Ele vai voltar, mulher de punho gordo! Ele vai voltar!
Segui meu caminho meio irritado com o desleixo das pessoas com sua própria cidade, mas decidi que aquilo não ia me aborrecer, não ia estragar meu dia. Fazia uma linda tarde de primavera, de temperatura amena e sol festivo, não havia razão para me aborrecer. Acionei a minha playlist e, de primeira, a música que veio foi uma bela e suave do Tom Waits, em que ele diz que espera não se apaixonar por certa moça.
O som combinou com a paisagem. A brisa da primavera balançava as folhas nas copas das árvores e a luz amarela do sol a tudo aquecia e a voz rouca do Tom Waits parecia dar ritmo ao movimento vagaroso e bom da natureza. Foi assim que esqueci a raiva da mulher de punho gordo e passei a me sentir feliz.
Continuei rodando macio com meu carro e ouvindo a música e admirando a cidade que passava e então vi, ao longe, o famoso guapuruvu da 24 de Outubro. Escrevi sobre ele no ano passado: trata-se uma árvore imponente, de 50 anos de idade e tronco majestoso. Durante décadas, ela coloriu a avenida com suas flores amarelas, mas, um dia, um de seus galhos caiu sobre um carro estacionado e o amassou. Foi o que bastou para o guapuruvu ser condenado à morte. Os homens vieram e lhe amputaram os galhos pequenos e lhe arrancaram as folhas e o que resta do guapuruvu é seu tronco e quatro galhos grossos que partem dele e se elevam, despidos, aos céus, como se estivessem em oração.
Foi essa a imagem que vi do meu carro, e ela me entristeceu.
Então, eu ficara com raiva da mulher que jogou a sacola na rua, depois alegre com a música e a paisagem doces e, finalmente, me senti triste por causa do guapuruvu mutilado. Tudo isso em poucos minutos.
Mas fui me aproximando, fui chegando perto da grande árvore e, como tive de me deter devido ao trânsito pesado, pude olhar com cuidado para o alto, e então vi: dos troncos atorados do guapuruvu brotavam galhos, e desses galhos pendiam folhas. Fiquei abismado. Será que o guapuruvu estava renascendo? Será possível que ele volte a ser frondoso e ostente novas flores amarelas na primavera e no verão?
Aquela ideia me encantou e, encantado, retomei a felicidade. Tom Waits continuava cantando, o vento ainda balançava as copas das árvores e a cidade estava azul e amarela e a vida insistia em vicejar no guapuruvu de membros decepados pelos homens. Pode ter sua doçura uma tarde de primavera em Porto Alegre.