David Coimbra

David Coimbra

Colunista de ZH e GZH e comentarista da Rádio Gaúcha, teve 18 livros publicados. Prêmios: 10 ARI, Esso de Reportagem, Direitos Humanos, Habitasul de Literatura, Erico Verissimo de Literatura, Açorianos de Literatura, entre outros. David faleceu em 27 de maio de 2022 após 10 anos de luta contra o câncer. Suas crônicas seguirão disponíveis em GZH.

Cotidiano

A pandemia nos faz lavar louça

Sei que há pessoas que adoram lavar louça. Elas dizem que esse é o momento em que pensam na vida. O corpo se ocupa de um trabalho que dispensa a criatividade, e a mente se deixa vagar

David Coimbra

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Tenho lavado muita louça. Não é uma atividade que me apraz, embora não me faça sentir ojeriza. Já a odiei, confesso. Hoje, não mais. Hoje, lavo uma louça conformado. Sem reclamar. E sem júbilo. 

Sei que há pessoas que adoram lavar louça. Elas dizem que esse é o momento em que pensam na vida. O corpo se ocupa de um trabalho que dispensa a criatividade, e a mente se deixa vagar. Meu avô, que era sapateiro, afirmava que a atividade manual tem essa propriedade de liberar o pensamento. Ele batia uma meia-sola e filosofava. 

Bem. Eu não preciso de um trabalho manual para pensar na vida. Estou sempre pensando nela, sem conseguir compreendê-la – ela vive me surpreendendo. Então, não me importaria de pagar uma pessoa para lavar a louça por mim. Até porque não tenho preconceito contra empregados domésticos. Não acho que seja escravidão ou coisa que o valha. É um trabalho tão digno quanto qualquer outro. 

Vejo gente comparando o esquema do empregado doméstico com a casa grande e a senzala dos tempos da escravidão, dizendo que só no Brasil isso acontece, que lá fora as pessoas lavam sua própria louça com orgulho. Que bobagem. É verdade que, nos Estados Unidos, poucas pessoas contratam domésticas, mas não é por consciência social; é porque é caro. Uma faxina básica, de três horas de duração, custa entre 80 e 120 dólares. 

Em Massachusetts, esses chamados “trabalhadores da limpeza” são, em sua maioria, brasileiros. Imagine: uma faxineira que cobra 100 dólares por turno pode fazer duas faxinas por dia. Ou: 200 dólares. Se trabalhar cinco dias por semana, são 4 mil dólares mensais, um pouco mais do que 20 mil reais. 

A faxineira faz lá o mesmo que faria aqui. Só que, lá, ela ganha dez vezes mais. Em resumo, não tem nada a ver com escravidão blá blá blá, tem a ver com o mercado de trabalho e com a forma como o trabalho é visto. 

Aí é que está: a forma como o trabalho é visto. Os americanos não têm preconceito contra tipos de trabalho. No supermercado que mais frequentava, o Trader Joe’s, vários dos caixas e atendentes eram senhores e senhoras da comunidade. Estavam ali para ganhar um dinheiro extra, quem sabe para completar a aposentadoria, e trabalhavam com grande alegria. Era bom ser atendido por eles. 

Outra: um dia, estava numa rua central da cidade e vi que o gari vinha varrendo da esquina. Havia muitas pessoas paradas na calçada. Ele se aproximava com sua vassoura e, ao chegar perto de alguém, dizia: 

— Pode se afastar, por favor? 

Falava isso não como um pedido, e sim como uma determinação. As pessoas se afastavam rapidamente, pedindo desculpas. Ele, naquele momento, era a autoridade. E o que lhe conferia autoridade? O trabalho que exercia. As pessoas respeitavam o trabalho dele. 

Já o Brasil é atormentado por um defeito que vem dos tempos do Império: na época, trabalhar era atividade para os escravos, nunca para os senhores. Os brasileiros sentiam vergonha de trabalhar. Há relatos de ingleses que viviam no Rio e ficavam embasbacados com o comportamento da população local. Por exemplo: se um inglês precisava do serviço de um chaveiro e o chamava à sua casa, esse profissional, antes de se deslocar a fim de atender ao cliente, contratava um escravo de ganho para carregar sua caixa de ferramentas. Era uma caixa leve, fácil de carregar, mas se o chaveiro fosse visto fazendo isso, ele seria comparado a um escravo. 

Desde então, certos trabalhos, no Brasil, são considerados como de segunda categoria. 

Pois o degas aqui não pensa desta forma. Respeito qualquer trabalho. São todos importantes, entre eles o de arear panelas. Digo até que quem nunca areou uma panela não sabe de fato como a vida é. Areie você também, e cresça como pessoa. Mas eu não preciso disso. Sem preconceito algum: esse método filosófico não é para mim. 


 

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