Você não vai acreditar, mas sinto mais frio aqui, no outono do Rio Grande Amado, do que no inverno de Boston, onde às vezes faz 20 abaixo de zero.
Como pode?
Pode.
Porque aqui não existe estrutura de combate ao frio intenso. Lá, os vidros das janelas são duplos e as paredes das casas têm duas ou três camadas que produzem isolamento térmico. Além disso, viceja em toda parte a bendita calefação. Vou dizer: a vida sem calefação é uma vida menor.
Digo o mesmo acerca do banho de chuveiro. Entenda, compreensivo leitor: vivi grande parte da minha vida tomando banho de chuveiro elétrico. Não sei como são os chuveiros elétricos hoje, nem quero saber, mas houve época em que eles me fizeram sofrer. A começar pelo começo: quando ia ligar o chuveiro, ele dava choque. Tinha de pegar o registro com uma toalha. Aí caíam aquelas gotas esparsas, miseráveis. Uma no Sul, outra lá adiante, no Norte. O ideal seria aumentar o fluxo, só que, quanto mais fechado o chuveiro, mais quente vinha a água. Assim, no inverno, em vez de um jato, vinham pingos.
Depois, minha mãe comprou uma ducha de plástico que prometia jorros de água deliciosamente fervente e fumacenta. Porém, a ducha não era muito diferente do chuveiro e, não raro, ainda estourava no meio do banho. Uma vez, minha irmã Silvia saiu correndo do banheiro, gritando e pelada, por causa da explosão, fazendo a alegria dos gaiatos dos meus amigos, que estavam lá em casa vagabundeando.
Então, o que quero dizer é que chuveiro à gás é alegria, chuveiro à gás é vida.
Bem como a calefação.
No entanto, não temos calefação ou paredes duplas por aqui. Mas temos umidade. A umidade gelada penetra pelas paredes e se instala em meus ossos. Assim, o frio que sinto não é um frio do clima lá fora, é um frio da alma, um frio conceitual, que condicionadores de ar, flanelas, lãs e cobertores não resolverão.
O fato é que perdi o costume do inverno gaúcho, e isso que o inverno gaúcho nem chegou.
Bem.
O que tenho feito, para solucionar meu drama?
Cremes.
Repare que não estou falando de sopas, estou falando de cremes. Eles fazem a diferença no inverno. Na Nova Inglaterra, onde vivi, há um creme típico, uma das poucas comidas típicas dos Estados Unidos. Chama-se clam chowder. A tradução seria “sopa de mariscos”, com o detalhe de que o chowder significa que a sopa é mais encorpada. E é. O que eles servem é um creme branco, denso, muito saboroso.
Porto Alegre, contudo, não é uma terra de frutos do mar. Então, os cremes que têm me encantado nesses dias são outros: de abóbora, de beterraba, de mandioquinha e, mais do que todos, um clássico: o imortal creme de ervilhas.
Era do que queria falar o tempo todo. Porque o creme de ervilhas foi um prato da minha infância. O inverno não acabava sem que minha mãe nos servisse um creme de ervilhas perfeito, informando:
— É bom, porque tem ferro.
Mas, por algum motivo, passei muitos anos sem experimentar um autêntico creme de ervilhas. Quando alguém me vinha com um, não era creme, era sopa. Rala. Superficial. Triste sopa.
Neste pré-inverno, tiritante leitor, tenho me regalado com cremes de ervilha suntuosos, que levam nas profundezas finíssimas rodelas de salsicha e, na superfície, minúsculos pedaços de bacon frito na própria gordura.
Isso me faz feliz, se você quer saber. Isso me afirma que, mesmo sem calefação, a vida na umidade fria do Pampa vale a pena ser vivida.