Tenho aqui comigo, numa estante de livros que se ergue bem às minhas costas, uma pequena estatueta da chamada “Sagrada Família”. José, Maria e seu menino Jesus estão juntos e de pé. José enlaça carinhosamente a cintura de Maria com o braço esquerdo e, no direito, carrega um buquê de lírios. Maria segura o nenê com as duas mãos. É uma imagem feita de gesso, delicada. Ganhei do Serginho Cabelereiro, há alguns anos.
Essa estatuetinha foi comigo para Boston e de lá voltou. Resistiu às viagens, mas, outro dia, a encontrei tombada e mutilada. A cabeça de José fora decepada na queda. Colei-a com cuidado, ficou razoável, apesar da minha falta de destreza manual. No entanto, a aura de José restou pela metade. Tudo bem, continuo gostando da estatueta.
Não é a única imagem religiosa que pontua na minha biblioteca. Diante de mim há uma medalhinha de Nossa Senhora dos Milagres, presente da minha amada sogra Ana Maria, e também uma bela versão da Bíblia do tamanho de um I-phone, com encadernação em couro que se fecha com zíper. Quem me deu foi a Evinha, que trabalha com minha sogra.
Guardo, ainda, Bíblias que recebi de leitores.
Sinto grande apreço por todos esses objetos sacros. Quem os vê me cercando deve pensar que sou um carola. Não sou. Respeito as religiões, estudo-as e interesso-me por elas, mas raramente frequento cultos.
A última missa a que compareci foi na véspera do Natal de 2019. Estávamos em Boston, e a Marcinha queria muito ir à igreja naquele dia. Fomos, eu, ela e o Bernardo. O lugar estava cheio – a comunidade católica de Boston é forte. Kennedy, que era de lá, foi o primeiro presidente católico dos Estados Unidos. O segundo é Biden.
Tinha tanta gente que ficamos de pé, no fundo da nave. Confesso que acompanhei a liturgia com pouco interesse, até que o padre anunciou:
- Agora, vamos apagar as luzes.
Em um segundo, a igreja estava às escuras. E um poderoso coro começou a cantar Noite Feliz. As colunas sonoras se levantaram de todos os lados, vozes humanas harmônicas sem acompanhamento instrumental, no estilo palestrina, nos envolvendo e quase nos fazendo levitar de encantamento. Foi lindo. Foi uma sublimação do espírito do homem. E, por isso, foi divino.
A música tem comunicação direta com a alma, mas não só a música. Quase tudo no que o ser humano coloca valores abstratos obtém essa ligação.
Como os objetos sagrados que ganhei e que mantenho cá comigo.
Há algo a mais do que gesso, metal ou papel em cada uma dessas peças. Há o afeto que as pessoas derramaram nelas. Há amor.
Uma imagem não é apenas uma imagem, e provarei isso. Assim: imagine que você tem nas mãos uma foto do seu filho, ou da mulher que ama, ou de qualquer pessoa que admira e preza. Certo. Agora, tome uma agulha e fure o olho da pessoa fotografada. Por mais materialista que seja, você decerto experimentaria algum mal-estar ao fazer isso. Por quê? Você sabe, racionalmente, que aquilo não passa de uma imagem. Mas tem a sensação de que o ato pode, de fato, fazer mal à pessoa representada.
Eis aí. Imagens, monumentos, estátuas, obras de arte não são só coisas. Há significados entranhados nelas. Seguirei no assunto e falarei de mais, falarei até... de Deus. Mas, por ora, pense em como nós, gaúchos, enquanto comunidade, cuidamos do nosso patrimônio material que tem conteúdo imaterial. Cuidamos mal, e isso diz muito de nós. Diz que estamos perdendo valores. O que é grave. Valores, depois que você os perde, não tem mais como comprar.