Eu tinha o hábito de chamar as pessoas de negrinho e negrinha. Sei de quem peguei isso. Da Mariana Bertolucci. Nós trabalhávamos juntos na redação e saíamos, em alegre bando, todas as noites, de segunda a segunda. Pois a Mariana tratava os amigos assim, negrinho, negrinha, e eu achava aquilo carinhoso e, quando vi, falava igual.
Até que, uma tarde, fui ao bar da redação e, depois de ser servido pela atendente, agradeci:
- Obrigado, negrinha.
Percebi na hora que ela estremeceu. Só então, por Deus, só então reparei que ela era negra. Não negra, negra; mais para mulata, ou, como se diz hoje, "parda", uma bonita pele, cor de café com leite. Ela não reclamou, mas, por sua expressão, ficou evidente que estava incomodada. Pensei em dar alguma explicação, mas não senti abertura para fazer qualquer comentário. Assim, voltei para a minha mesa com o meu café.
Só que aquilo começou a me afligir. Tenho repugnância por tudo que possa remeter a racismo. Pensar que alguém podia achar que tivesse cometido um ato racista me inquietava. Tentei esquecer o assunto, mas as horas passavam e aquela ponta de chateação vez em quando retornava e me espetava o peito. Decidi: vou lá falar com ela, vou dizer que chamo todo mundo de negrinho, seja branco, negro, japonês, cafuzo ou mameluco. Marchei até o bar.
Ela já tinha saído.
Foi uma frustração, não consegui me redimir.
Acabei não esclarecendo a história com a atendente, depois não houve mais clima para tornar a abordá-la a respeito. Mas nunca mais chamei alguém de negrinho. Não por medo de reações irritadas, naquela época as pessoas não estavam tão predispostas ao julgamento moral, não havia redes sociais e cancelamentos, não havia essa ansiedade por caçar preconceitos. É que, ora, não estou nesse mundo para ofender as pessoas. Não gosto de saber que algo que fiz, disse ou escrevi magoou outros seres humanos. Não é assim que vivo. Não é assim que trabalho. Não é assim que sou.
Então, se compreendo que algo que fazia sem maldade terminou gerando o mal, paro de fazer.
É esse o argumento que entrego, por exemplo, para o leitor que vem me perguntar: “Por que tu não escreves mais aqueles textos provocativos sobre mulheres?” Muita gente vem me cobrar isso, principalmente, veja só, as mulheres mais maduras. O problema é que vi que outras ficavam contrariadas com certas provocações, levavam-nas muito a sério e se sentiam ultrajadas. Desta forma, como o tema não era tão importante para mim, não o explorei mais.
Até porque, como já ensinou Heráclito há 25 séculos, o mundo é o rio que corre e o fogo que queima: está sempre mudando. Se você não mudar junto, ficará congelado no passado. A sociedade não admite mais certas ações? Paciência, deixe de fazê-las. Picasso, quando nasceu, não respirava. O médico que fazia o parto era seu tio, que, para abrir os brônquios do bebê, tomou uma atitude in extremis: soprou-lhe no rosto uma baforada do charuto que fumava durante o procedimento. A fumaça trouxe o nenê para uma vida que daria à Humanidade 40 mil obras de arte.
Um médico fumando no hospital, em meio a um parto. Alguém concebe isso hoje em dia?
O mundo muda.
Urge que mudemos junto.
Porém, é preciso ter um pouco de tolerância e, mais, de inteligência. Às vezes, o que parece abominável é nada mais do que algo fora de época. Acredite, juiz dos outros: as pessoas em geral não são más. Elas são, muitas vezes, apenas antigas.