Meu avô, o velho sapateiro Walter, dizia sempre:
— Tudo o que é demais derrama.
Preciso e perfeito. Não há nada, nem o ótimo, que, sendo em excesso, seja bom.
Queria dizer isso para tantos amigos idealistas que tenho, pessoas de boas intenções, que se batem pela igualdade e pela pluralidade. Porque esse é um mal do nosso tempo, essa ânsia de tornar o mundo melhor. Isso leva a demasias.
Um exemplo atual: o pleito de alguns vereadores para mudar a letra do Hino Rio-Grandense, porque ela conteria um trecho racista. A frase rechaçada é a seguinte: “Povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. Quem vê racismo interpreta assim: “Se o povo que não tem virtude acaba por ser escravo, todo escravo é um povo sem virtude. E, como os escravos, no Brasil, eram negros, a letra afirma que os negros eram um povo sem virtude”.
Um raciocínio sofismático. A começar pela forma: dizer que um povo sem virtude acabará por se tornar escravo não é igual a dizer que todos os povos escravizados são sem virtude.
No conteúdo, também. Porque é óbvio que a intenção do autor do hino não era dizer que os negros escravos não tinham virtude. Ele se referia à escravidão do Rio Grande em relação ao governo central, ele defendia a rebelião gaúcha.
Ou seja: tecnicamente, é errado interpretar o verso como racista.
A propósito: existia, na escola, a disciplina de interpretação de texto. Não sei se existe ainda. A professora nos dava algo para ler e, depois, tínhamos de explicar o que havíamos compreendido. A interpretação correta, logicamente, era a que mais se aproximasse do que o autor queria dizer.
Então, compreenda: existe uma forma certa e uma errada de interpretar um texto. E, em geral, quando o leitor conhece a opinião de outras pessoas sobre o que lê, essa opinião influenciará a sua interpretação. É verdade que cada um sente o texto a partir de sua experiência, mas o sentimento não pode ser levado em conta na interpretação racional. O sentimento serve para você dizer se gostou ou não do que leu.
Outro ponto: o autor da letra, Chiquinho da Vovó, era cristão batizado, numa época de militância religiosa. Ora, o centro do cristianismo e do judaísmo é a história de um dos povos que mais sofreram sob o jugo de outros povos: os hebreus. O famoso Salmo 137, que já foi até cantado em música popular nos anos 70 pelo Boney M, pranteia:
“Às margens dos rios da Babilônia
Nos assentávamos chorando,
Lembrando-nos de Sião.
Nos salgueiros daquela terra,
Pendurávamos então nossas harpas,
Porque aqueles que nos tinham deportado
Pediam-nos um cântico.
Nossos opressores exigiam de nós um hino de alegria:
‘Cantai-nos um dos cânticos de Sião!’
Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor
Em terra estranha?
Se eu me esquecer de ti, ó, Jerusalém,
Que minha mão direita se paralise!
Que minha língua se me apegue ao paladar
Se eu não me lembrar de ti!”
Os hebreus, virtuoso Povo do Livro, choravam a dor da submissão.
Alguém que respeita minimamente a Bíblia, mesmo que seja racista, pode dizer que todos os povos escravizados são sem virtude?
É evidente que não.
É preciso muito esforço para ver racismo na letra do hino. Mas não se trata de má intenção dos vereadores. É, apenas, excesso de zelo. Como militantes do movimento negro, eles estão treinados para caçar qualquer sombra de racismo, em qualquer parte. O mesmo ocorre com outros militantes, de outras causas. O que provoca exageros e, assim, gera reação. E oposição. E conflito.
As ignorâncias que nos cercam hoje são justificadas pelos excessos de pessoas bem-intencionadas.
Tudo o que é demais derrama.
É o que queria dizer desde o começo: a demasia na defesa de uma causa se volta contra a própria causa. Os gênios Martin Luther King, Gandhi e Mandela já ensinaram que é conquistando as pessoas que se avança, não lutando contra elas.
Um povo que não tem virtude pode, sim, se tornar escravo, e não necessariamente de outros povos. Pode se tornar escravo da ignorância, do preconceito e do ressentimento, escravo do próprio egoísmo, do próprio medo e das próprias crenças. Há muitas maneiras de se tornar escravo, na vida. O gaúcho, festejado pelo hino, tornou-se escravo do seu cinismo, da sua iconoclastia e da sua belicosidade. Esqueceu-se da advertência feita na letra: que, para ser livre, não basta ser forte, aguerrido e bravo. Para ser livre, é preciso ter empatia, é preciso olhar para o outro e, se for necessário, cuidar dele. É preciso respeitar. Até porque só assim se é respeitado.