Rebrilha, nas prateleiras das boas livrarias, um livro que você precisa ler. E, quando digo “precisa”, não exagero. Trata-se de uma necessidade para qualquer brasileiro que pretenda conhecer um pouco do seu país e da realidade em que vive. Estou falando de A Organização, da jornalista Malu Gaspar.
Nesta obra-prima do jornalismo, Malu faz mais do que jornalismo: faz História com agá maiúsculo. Ela conta um pedaço da história do Brasil de um ângulo diferente. É como olhar para Manhattan a partir da ilha da Estátua da Liberdade ou para Porto Alegre a partir de Guaíba. Porque Malu narra a saga da maior empreiteira que já existiu na América do Sul, a Odebrecht, e, desse ângulo único, descreve o que aconteceu no país desde Geisel até Bolsonaro.
Muito do que Malu relata já é sabido, principalmente depois da explosão da Lava-Jato, mas o seu grande mérito é organizar os fatos e descrevê-los como se estivesse compondo um romance policial. Além disso, durante três anos e meio ela submergiu no vasto mundo da Odebrecht, conheceu seus personagens mais importantes, arrancou-os das sombras e sobre eles jogou a luz de um texto preciso, que não derrapa uma única vez nas quase 600 páginas da narrativa.
Entre esses personagens, o mais fascinante é Marcelo Odebrecht, um homem inflexível e atormentado, eivado de ressentimentos, vítima de seus próprios dramas emocionais, que o fazem parecer duro, quando na verdade é frágil. A trajetória de Marcelo, que vive pela e para a Odebrecht, é espantosa, porque tudo o que acontece com ele poderia ser evitado ou suavizado, se ele não fosse quem é. Marcelo é prisioneiro da sua personalidade. Por mais que os fatos apontem para uma nova realidade, ele não consegue enxergá-la e caminha resoluto para o outro lado. Para o abismo.
Ninguém está a salvo da verdade no livro de Malu. Corrupção grossa e fina salta de todos os espectros políticos. Em meio a bilhões de dólares que são entocados em instituições financeiras esquivas mundo afora, aparece, por exemplo, o peculiar caso do irmão de Lula, Frei Chico, que foi indicado pelo próprio ex-presidente para trabalhar como uma espécie de espião da Odebrecht nos sindicatos de trabalhadores. Frei Chico recebia um salário para desmontar greves pelo Brasil. Depois que Lula foi eleito, ele, obviamente, não podia mais continuar exercendo essa tarefa, mas a empresa prosseguiu lhe dando uma remuneração só para mantê-lo sob controle. Frei Chico recebia R$ 9 mil por trimestre, depois reajustados para R$ 15 mil. Um homem barato.
Se você é petista e ficou agastado com essa informação, calma lá. A Odebrecht também se relacionou intimamente com o PSDB. Leia esse trecho sobre José Serra, quando ele era governador de São Paulo:
“Serra não falava apenas de ideias e projetos. Também pedia (e levava) dinheiro para as campanhas. Na eleição presidencial de 2002, recebeu da empreiteira R$ 15 milhões no caixa 2. Em 2004, quando disputou a prefeitura paulistana, também contou com a organização. O mesmo aconteceu em 2006, quando se elegeu governador de São Paulo. Agora que estava eleito, esperavam-se os dividendos do ‘investimento’”.
Os principais dividendos eram as obras do Rodoanel, uma via expressa de 182 quilômetros que contornava a região metropolitana. Serra mandou um emissário, Paulo Preto, para negociar com a empresa: “Ele explicou que o governador ia mesmo forçar uma queda nos preços, mas deixou claro que os descontos podiam ser compensados depois, com modificações nos contratos – desde, é claro, que as empreiteiras aceitassem recompensá-lo também. ‘Já que vocês vão ter essas melhorias, eu preciso de 0,75% dos valores para poder pagar campanhas passadas e futuras’”.
Acerca da escandalosa construção do estádio do Corinthians, Malu traz bastidores da polêmica que a obra motivou na empresa: o pai, Emílio, amigo de Lula, defendia o projeto; Marcelo, o filho, era contra. O capítulo 15 abre com um debate entre os dois:
“’Meu pai, eu nunca trouxe para você um problema do Aécio. Por que você quer que eu resolva seus problemas com Lula?!’ A discussão entre Marcelo e Emílio já levava alguns minutos, galgava os decibéis e ameaçava terminar mal. Então o pai sacou uma de suas frases-coringa: ‘Rapaz, nós vamos ganhar muito mais lá na frente!’. Marcelo detestava quando Emílio dizia aquilo. Ouvira o mesmo nos embates das usinas do Madeira, quando tinham começado as perdas com etanol, e em várias outras ocasiões em que o grupo perdera dinheiro. E agora Emílio insistia em construir um estádio para o Corinthians, contra todos os obstáculos, só porque Lula queria”.
Poderia preencher dezenas de páginas com pedaços interessantes do livro de Malu. Trata-se de um cartapácio, afinal. Mas seu enfrentamento é leve, apesar do tema pesado. Leia. Você precisa ler.