Às vezes alguém me acusa de ser americanófilo. Quando isso acontece, reajo com firmeza. Rebato: “Você está absolutamente certo! Sou americanófilo!”
Pois sou. Admiro os Estados Unidos da América, sua grandeza, seu povo, suas instituições. Por ter vivido lá durante seis anos, sei também de seus defeitos, o que não diminui o país. Ao contrário: torna-o maior, porque é espantoso como uma nação tão vasta e tão variada consegue administrar seus problemas com tamanha competência.
São, realmente, muitas as mazelas que afligem os Estados Unidos. Mas muitos também são seus méritos. Os maiores, de natureza imaterial.
O suíço Carl Gustav Jung, primeiro discípulo e depois rival de Freud, dizia que, além das nossas estruturas psíquicas individuais, existe o “inconsciente coletivo”, formado por ideias pré-concebidas, adquiridas por meio da cultura em que se vive. Diariamente, convivendo com as pessoas, você absorve pensamentos, conceitos e preconceitos, e compreende determinadas formas de viver como certas ou erradas, boas ou ruins.
Nos Estados Unidos, a Constituição Americana tornou-se parte do inconsciente coletivo. É como se fosse um guia, uma baliza. Basta morar lá, mesmo sem ser americano, e você compreende que existem regras que estão acima de todos. Então, você se comporta de acordo com essas regras.
O respeito à lei é a liga que mantém a sociedade americana unida.
Ocorre que a solidez dessa união se viu ameaçada devido ao comportamento de Trump e seus apoiadores, nas últimas semanas. Porque eles se recusavam, justamente, a cumprir as regras do jogo. Eles testaram o sistema até seus últimos limites.
Os limites foram atingidos quando houve a invasão ao Congresso. Mas, naquele momento, não fiquei preocupado. Ao contrário: exultei. Sabia que o inconsciente coletivo iria se rebelar contra um ataque à sua essência e que isso faria com que as coisas voltassem ao lugar correto. Foi o que se deu. Republicanos, apoiadores de Trump e até o próprio Trump repudiaram os excessos, e os valores democráticos americanos se reergueram com pujança.
Assim, Biden assumiu, subiu ao púlpito e fez um dos mais belos discursos de posse de um presidente americano em décadas. Biden foi emotivo e racional ao mesmo tempo. Não negou que existem divergências, mas ressaltou que as pessoas podem divergir em paz. E arrematou com uma proposta arrebatadora: “Vamos começar do zero”.
Quer dizer: a ideia é voltar ao ponto de partida para fazer tudo de outra maneira, sem brigas, sem ofensas, com respeito mútuo.
Parece difícil, mas sei que é possível. A História mostra que os povos aprendem com as próprias vicissitudes e, principalmente, com os próprios erros. Aprendem, sobretudo, nas derrotas. A Alemanha e o Japão eram dois dos países mais belicosos do mundo, e se transformaram em alguns dos mais pacifistas graças aos reveses que sofreram. Houve uma mudança no inconsciente coletivo desses povos: o espírito guerreiro foi substituído pelo de tolerância, o autoritarismo pela democracia.
Os Estados Unidos passaram por um trauma, com a invasão do Congresso. Não é do tamanho de uma guerra, mas foi doloroso, pode trazer bons resultados. E o Brasil? Que contingência transformaria nosso inconsciente coletivo? O que nos faria começar tudo outra vez? É disso que precisamos. Precisamos começar tudo outra vez.