Certos comportamentos de Bolsonaro são insondáveis. Por que ele ignorou o assassinato cometido no Carrefour, que vem alcançando repercussão mundial?
Não faz sentido.
Está claro que Bolsonaro não concorda com a interpretação feita pela maioria das pessoas, de que houve motivação racista na agressão brutal à vítima. Tudo bem, ele poderia, então, não falar de racismo, mas falar do crime, repudiá-lo e pedir justiça. Seria sensato. Mas, não. Bolsonaro nem sequer citou o caso. Ou, pior, roçou o assunto sem mencioná-lo diretamente.
Ocorreu em um de seus pronunciamentos no fim de semana. Durante discurso no G20, Bolsonaro abordou superficialmente a questão, comentando não sobre o assassinato, mas sobre as reações ao assassinato. Disse que “tensões entre raças no Brasil são importadas e alheias à nossa história”, e ressaltou o caráter miscigenado do povo brasileiro.
Errou de novo. Poderia ter ressaltado a miscigenação sem negar o racismo. Porque ambos são verdadeiros. Nenhum país do mundo é mais miscigenado do que o Brasil, o que não é apenas o resultado dos estupros das escravas pelos senhores brancos. É mais profundo, porque os chamados “casamentos mistos” são uma realidade inquestionável, no país.
Tome os exemplos de três dos mais importantes personagens da história brasileira nascidos no século 19:
1. Machado de Assis. O maior dentre todos os romancistas do Brasil, um dos raros gênios da raça, era mulato, filho de um pintor de paredes negro e uma portuguesa dos Açores.
2. Nilo Peçanha. Foi o nosso primeiro presidente negro. Exatamente, perplexo leitor: Nilo Peçanha, filho de um padeiro negro com uma moça branca da burguesia carioca, foi presidente da República cem anos antes de Obama. E mais: 50 anos antes dos hippies, adotou o lema “paz e amor”. Era um visionário.
3. Arthur Friedenreich. O maior jogador do Brasil antes de Pelé, autor de mais de mil gols, era filho de um descendente de alemães com uma professora negra.
Quer dizer: houve miscigenação forçada, no Brasil, mas houve também natural, derivada de relações afetivas legítimas.
O que confunde as coisas é a nossa histórica deficiência de interpretação de textos. Há dois clássicos da filosofia e da sociologia nacionais que geraram conceitos equivocados, mas não pelo que foi escrito, e sim pelo que foi lido.
Uma das grandes atrapalhações foi produzida pela leitura equivocada do maravilhoso Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, pai do Chico. Daí surgiu a tese do “brasileiro cordial”, que seria o “brasileiro bonzinho”, como miava Kate Lyra. Sérgio não queria dizer isso. Queria dizer que o brasileiro age movido por emoção, o que é diferente de agir por bondade.
Já a lenda da “democracia racial” foi criada pela leitura de viés do também maravilhoso Casa Grande e Senzala, do pernambucano Gilberto Freyre. Ocorre que, na época, existia a tese de que o “branqueamento racial” purificava raça. Ou seja: quanto mais branco fosse um povo, mais desenvolvimento alcançaria. Freyre afirmava o contrário: afirmava que a mestiçagem era a força do Brasil. Era essa a tese central do livro. Com a qual, aliás, concordo: o melhor do brasileiro advém do ecumenismo étnico.
A miscigenação brasileira, portanto, poderia ser exaltada, sem que se fechasse os olhos para o racismo óbvio e doloroso. Reconhecer o racismo, e combatê-lo com vigor, não é um ato de esquerda nem de direita. É um ato de humanidade.