Estávamos à mesa do café da manhã. Dei uma encompridada no olhar por cima de uma jabuticabeira que tem aqui em casa, lancei-o lá para longe, bem alto, mergulhei-o no azul plácido do céu, e a Marcinha perguntou:
“No que que tu estás pensando?”
Pousei a xícara no pires. Olhei para ela, surpreso:
“Que é isso? Parece o Facebook!”
Porque o Facebook sempre pergunta em que estou pensando, além de me incentivar a dizer como estou me sentindo. O que o Facebook quer com essas informações tão pessoais? É irritante.
Tive uma antiga namorada que era assim. A todo momento perguntava no que eu estava pensando. No que tu estás pensando? No que tu estás pensando?
Que te interessa? Será que nem os pensamentos podem ser exclusivamente meus?
É que nem o banheiro. Vou ao banheiro e, em um minuto, alguém começa a falar comigo do outro lado da porta. Não dá para esperar que eu saia do banheiro? O assunto é assim tão urgente?
Nunca é urgente. Sempre é uma besteira. Mas a pessoa acha que TEM de falar comigo mesmo quando a porta está fechada diante dela e eu estou no recôndito daquele lugar sacrossanto, onde um ser humano lida com suas intimidades mais profundas, como os movimentos intestinais e peristálticos.
A propósito, deixe-me falar de algo que me escandaliza: casais que fazem necessidades fisiológicas de porta aberta. Para tudo há um limite. A privacidade não é apenas saudável: ela preserva os relacionamentos do desencanto. Há certos mistérios que precisam ser mantidos. Por mais que eu goste de alguém, há determinadas coisas sobre essa pessoa que não quero saber. Não me conte! E, principalmente, não me mostre!
Agora, se a pessoa quiser mesmo se expor, pelo menos que haja um pouco de critério. Tome uma atividade mais amena como ilustração, como a higiene bucal. Os americanos se espantam com a quantidade de vezes que os brasileiros escovam os dentes. Para eles, é muito estranho alguém levar escova e pasta para o trabalho, e limpar os dentes após uma refeição. Até porque o almoço, para os americanos, deve ser engolido em frente ao computador, em meio ao trabalho, sem cerimônia, sem garfo, sem faca. Bárbaros.
Mas tenho a impressão de que o hábito de escovar os dentes no ambiente de trabalho é recente inclusive no Brasil. Uma vez, eu estava em meio à escovação no banheiro da Zero Hora, depois do almoço, e o Sant’Ana entrou. Ele me viu e comentou, não sem desdém:
“As novas gerações escovam os dentes...”
Bem, escovamos. Nós, jovens.
Mas um colega tinha o hábito de sair do banheiro usando o fio dental. Sério, o cara fazia isso. Ele ia passando o fio dental entre os dentes enquanto caminhava pela redação. Os restos de comida saltavam-lhe da boca como torpedos, às vezes atingindo o olho de algum incauto que estivesse por perto.
Para você ver como a privacidade protege não apenas quem dela desfruta.
Há, no entanto, belas exceções. Havia uma moça, numa praia que eu frequentava, em Santa Catarina, que gostava de escovar os dentes na janela. Ela era morena e lânguida, de uma languidez de quem domina o mundo em que vive, de quem está pouco ligando para opiniões, teses ou causas. É a languidez do bicho ao sol, de quem sabe que é, de quem sabe que não precisa provar nada, pois está tudo dito.
Pois ela gostava de escovar os dentes na janela.
A casa tinha dois pisos e seu quarto ficava no de cima. A certa hora incerta da manhã, ela abria a janela do quarto com as duas mãos, segurando, entre os dentes, a escova. Depois, fincava o cotovelo esquerdo na janela e, com a mão direita, escovava calmamente os dentes alvos, ao mesmo tempo em que mergulhava o olhar em algum ponto além da segunda arrebentação.
Era uma cena boa de se ver. Uma moça bonita, exercendo uma atividade íntima praticamente em público, mas de modo tão natural, tão casual, que dava na gente uma paz, um amolentamento dos ombros, um peso nas pálpebras, uma suave vontade de se embalar na rede, ouvindo o bramido distante do mar.
No que estou pensando? Em escovar os dentes numa manhã de sol, olhando para o azul do oceano. É nisso que estou pensando.