Sou um bom descascador de laranja. Sei que, hoje em dia, as pessoas não dão mais valor a quem sabe descascar uma laranja, elas estão mais preocupadas com os top trends do Twitter, mas eu não. Eu continuo descascando laranjas, e bem.
Dizem que, laranja, o bom é comer de manhã. Antigamente vigorava um ditado que informava: “Laranja de manhã é ouro, de tarde é prata e de noite mata”.
Isso antigamente. Hoje acho que laranjas noturnas não matam mais.
Meu avô contava uma história assustadora sobre laranjas perigosas. Um dia, um vizinho dele em Hamburgo Velho adoeceu gravemente. Nenhum médico descobria o que o homem tinha, mas estava claro que ele ia morrer, não duraria muito tempo mais. Estava agonizando em casa, no leito, rodeado por amigos e parentes, como soía acontecer naquele tempo (antigamente), quando um desconhecido bateu à porta. Foram atender e o estranho, sem nem dizer bom dia, anunciou: “Eu posso curar o moribundo”.
Ficaram todos se olhando. O que era aquilo? Pediram explicações, mas o homem não as deu. Disse, apenas, que curaria o enfermo se permanecesse alguns minutos no quarto com ele, sozinho, em silêncio. Bem... o que havia a perder? Esvaziaram o quarto e deixaram os dois lá e lá eles ficaram, a sós, por algum tempo. Quando a mulher do moribundo já se impacientava, quando ela ia invadir o quarto, a porta se abriu. E o desconhecido apareceu ao lado do homem doente, que não estava mais doente. Ao contrário: sorria e parecia saudável como uma youtuber fitness. Ficaram todos espantados. Perguntaram quem era aquele curandeiro milagroso e o que ele queria em troca. Ele respondeu que nada, mas fez uma advertência:
“Ele nunca mais pode comer laranja”.
E se foi embora, sem nem dizer o nome.
Os anos se passaram, como costumam fazer os anos, e o vizinho do meu avô continuou com ótima saúde. Engordou, tinha uma cara lustrosa e satisfeita. Até que, na tarde de verão de um sábado, surgiu no bairro um vendedor de laranjas. Era uma tarde quente, azul e amarela, e a vizinhança se pôs a comer laranjas com entusiasmo. O vizinho do meu avô olhou aquilo e os invejou. Eram laranjas lindas, bem redondas e douradas. Ele salivava, vendo aquelas laranjas. Então, pensou: mas que bobagem esse interdito, que coisa idiota, por que uma laranja faria mal a alguém? Foi lá e comprou uma laranja. Descascou-a. Comeu-a. E morreu.
Assim se encerrava a história do meu avô, mas a minha, com as laranjas, prossegue. Porque sei descascá-las. Pego uma faquinha de bom corte e, depois que encosto seu fio na casca da laranja, não desencosto mais até que ela esteja nua como aquela morena que um dia me disse: “Vem, cachorrão”. Vou pelando a laranja em uma única tira de dois dedos de espessura, a casca sai inteirinha e redonda, perfeita, uma obra de arte. Aí, o que se tem de fazer é tomar uma das pontas entre o indicador e o polegar e girar a casca em movimentos circulares, recitando o alfabeto, cada volta uma letra: A... B... C... A letra na qual a casca arrebentar é a primeira do nome da mulher da sua vida. Funciona, pode tentar.
Mas o que gosto mesmo, no ato de descascar laranja, é que paro tudo, quando faço isso. Chamo o meu filho: “Vamos comer uma laranja?” E ele larga o videogame e vem. Esse momento se dá sempre à tarde, de preferência com sol, porque é debaixo do sol que nos sentamos, sentindo os ombros aquecidos e a cabeça vazia, num silêncio macio que nos deixa ouvir os passarinhos chilreando nas árvores e o latido distante de algum vira-lata amarelo.
Descasco a laranja com simetria de engenheiro, e meu filho fica observando. Então, enquanto a laranja se desveste, conversamos um pouco. Não é uma conversa importante, porque não penso em nada realmente sério. Não penso nos meus problemas ou nos do Brasil, não penso nas opiniões definitivas que as pessoas publicam nas redes, não penso nos top trends do Twitter. Penso apenas em fazer a casca sair inteirinha e apresentá-la para o meu filho e propor: “Quer descobrir a primeira letra do nome da mulher da tua vida?”