Nunca fui ruano. Esse termo, “ruano”, eu o ouvia da boca da minha mãe.
“Tu anda muito ruano!”
Talvez andasse mesmo. Um pouco. Na época. Gostava de jogar uma peladinha e vadiar com os amigos por aí e, de repente, estacionar debaixo da janela da Sândi, uma loirinha de olhos claros que morava no térreo, e me demorar naquele chalalá. Eu na calçada, ela no balcão, Romeu e Julieta do subúrbio.
Ainda assim, sempre gostei de ficar em casa. Porque me atraem as atividades de introspecção: ler, escrever, ver filmes, jogar um xadrezinho. Isso de home office não me causa dor nem tormento. Preferia a redação? Claro que preferia. Uma redação de jornal é o lugar em que está concentrada a maior variedade de interesses mundanos, a vida pulsa e freme na redação. Mas sou treinado para me adaptar às contingências, tento tirar de cada uma o que ela tem de bom.
Não é característica só minha, obviamente. Vejo que a maioria das pessoas está tentando extrair coisas positivas do isolamento social. Elas fazem lives. Todo mundo faz live, todo mundo virou jornalista entrevistador. E elas fazem, também, pão. Nas redes sociais, a todo momento aparece alguém apresentando, numa bandeja, o pão que preparou com as próprias mãos.
Sinto algum enternecimento, quando vejo cenas de uma pessoa sovando a massa numa mesa enfarinhada ou oferecendo o pão recém-saído do forno para seus amigos e parentes. Existe algo mais doméstico do que fazer pão? Existe algo mais caseiro, simples e puro do que fazer pão?
Sou neto de uma avó que cozinhava. Dona Bernardina. Ou: Dona Dina. Ela não cozinhava por acaso, nem como se fosse um encargo diário da casa, como arrumar a cama ou varrer o chão. Nada disso. Ela cozinhava por amor. Era o que mais gostava de fazer na vida. Sua cozinha estava sempre funcionando e de lá saíam maravilhas que, literalmente e alegoricamente, deram sabor à minha infância.
A ideia que tenho de felicidade é uma mesa posta, com pessoas que se amam sentadas em volta. A conversa flui como um riacho no meio do mato, é amena e boa, e as pessoas sorriem umas para as outras. Então, Dona Dina surge da luz amarela da cozinha, carregando nos braços uma travessa fumegante. O cheiro delicioso da comida inebria a todos e ouve-se murmúrios de antecipação do prazer: mmmm... Ninguém pensa em nada de ruim, naquele momento. Naquele momento, somos um só.
Dona Dina fazia de tudo para nós. Das parreiras do quintal vinha o suco de uva, do galinheiro vinham os ovos ainda quentes do corpo da galinha-mãe, e a massa ela mesma cortava com um estilete e sobre as tiras espargia farinha e só de ver eu salivava.
Dona Dina, como os confinados da pandemia do século 21, assava o seu próprio pão. Nós o provávamos logo que saía do forno. A manteiga derretia assim que era espalhada sobre cada fatia. Era lindo de ver e melhor ainda de comer.
Aquele amor que minha avó tirava da boca do fogão era o cimento que unia a nossa família. E é esse, creio, um ganho que teremos com os tempos pandêmicos. As pessoas fazem pão. É a mais familiar das atividades. O pão não é apenas um alimento; é um símbolo de segurança, de sobrevivência, das coisas sólidas da vida. Você trabalha duro e diz que faz assim para trazer o pão para casa, para dar sustento à sua família. O pão é o que nos mantêm vivos.
As pessoas que cozinham pão durante a pandemia provavelmente continuarão cozinhando depois. E vão querer que seus afetos provem aquilo que elas fizeram com suas mãos e com seu coração. E vão sentar em torno à mesa e contar histórias e sorrir ao ver a manteiga se espalhando no pão. O pão que, ao ser repartido, mantém todos juntos.