Concordo que o que faz grande sucesso popular em geral é rasteiro.
Concordo.
Porque, para se fazer grande sucesso popular, é preciso tocar a alma da maioria, e a maioria é mediana. Então, você não pode ser elevado nem profundo. Se for elevado ou profundo, a mediania ficará onde fica sempre, no meio, e não o alcançará.
No entanto, o grande sucesso popular só atinge essa categoria por ter algo especial. E aí não estou falando apenas do sucesso eventual, da fama passageira. Estou falando do sucesso continuado, que atravessa gerações. Não estou falando da Valeska Popozuda, de Gagnam Style, de Macarena ou do Lepo Lepo, estou falando de Roberto Carlos.
O grande sucesso popular, por isso, às vezes é subestimado e às vezes é superestimado.
Assim é o maior sucesso popular da literatura juvenil de todos os tempos, O Pequeno Príncipe. Nem sei se posso enquadrá-lo nessa categoria, de literatura juvenil, mas seja. O Pequeno Príncipe se tornou uma espécie de símbolo de livro de auto-ajuda antes do surgimento dos livros de auto-ajuda. Dizia-se que era o livro favorito de todas as misses e, com isso, queria-se dizer que o livro e as misses eram fúteis. Afinal, uma jovem de biquíni afirmar que estava lendo O Nariz, de Gogol, era coisa que não combinava. Preconceito contra as jovens de biquíni. E preconceito contra O Pequeno Príncipe.
É uma leitura prazerosa, O Pequeno Príncipe, se você entrar no clima da história. A frase mais citada do livro é, sem dúvida, “tu te tornas responsável por aquilo que cativas”, mas eu prefiro a parte do reizinho. O Pequeno Príncipe está diante do rei de um planeta mínimo e o aborda:
- Majestade... Eu vos peço perdão de ousar interrogar-vos...
- Eu te ordeno que me interrogues - apressou-se o rei a declarar.
- Majestade... Sobre quem é que reinas?
- Sobre tudo - respondeu o rei, com grande simplicidade.
- Sobre tudo?
Pois ele não era apenas um monarca absoluto, era também um monarca universal.
- E as estrelas vos obedecem?
- Sem dúvida - disse o rei. - Obedecem prontamente. Eu não tolero indisciplina.
- Eu desejava ver um por de sol... Fazei-me esse favor. Ordenai ao sol que se ponha...
- Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se em gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem, ele ou eu, estaria errado?
- Vós - respondeu com firmeza o principezinho.
- Exato. É preciso exigir de cada um, o que cada um pode dar - replicou o rei. - A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, farão todos revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis.
- E meu por de sol? - Lembrou o principezinho, que nunca esquecia a pergunta que houvesse formulado.
- Teu por de sol, tu o terás. Eu o exigirei. Mas eu esperarei, na minha ciência de governo, que as condições sejam favoráveis.
Eis aí, no clássico das misses, tudo o que devemos saber sobre o lockdown em Porto Alegre. Hoje, nenhuma autoridade conseguirá impor o lockdown, porque ele não será cumprido. E não será cumprido não porque as pessoas não querem, mas porque não podem. Quatro meses e meio de restrições exauriram a cidade. Boa parte da população não tem mais condições de ficar sem exercer suas atividades. Essa gente precisa trabalhar para sustentar os filhos, para pagar o aluguel, para comer, para tratar de outras doenças que não a covid-19.
Conheço manicures, cabeleireiros, chaveiros, eletricistas, hidráulicos, vendedores de roupa, doceiras, donos de carrocinhas de cachorro-quente, conheço dezenas de pessoas que estão trabalhando clandestinamente, não por revolta, por indisciplina ou por negacionismo; mas por necessidade.
As autoridades estão convencidas de que o lockdown é o remédio para a crise de saúde, mas, na sua ciência de governo, como o reizinho sábio, terão de criar condições favoráveis.